Direção

Ione de Medeiros segue na busca pelo experimento e comemora trajetória

Com 35 anos dedicados à direção teatral e à construção de uma linguagem sólida com o Grupo Oficcina Multimédia, espetáculo 'Boca de Ouro' é sua primeira montagem de Nelson Rodrigues

Por Joyce Athiê
Publicado em 28 de janeiro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Em 1983, Ione de Medeiros dirigia – e também atuava – em “Biografia”, espetáculo criado a partir de um poema de Ferreira Gullar. “Era sobre uma pessoa que tinha o sonho de tocar violino e passa a vida inteira se distanciando dele. Tem um frase que dizia ‘ele foi como um fio d’água que não chegou a ser rio’. Era uma reflexão sobre fazer arte ou ceder ao pragmatismo da vida”, conta.

Ione, ao contrário, seguiu. Da estreia, já se vão 35 anos dirigindo espetáculos teatrais, construindo uma linguagem própria ao lado de seus companheiros de criação do Grupo Oficcina Multimédia. A autoralidade, a fragmentação, o uso de objetos cotidianos, a presença das artes plásticas e da música, o trabalho corporal e imagético em cena, a predileção por não personagens são recorrências da dramaturgia do grupo.

Apesar da sólida construção, Ione revela que não há fixidez que a impeça de mudar. “Vou fazer Nelson Rodrigues pela primeira vez, com texto e personagem”, conta entusiasmada.

Rendida ao dramaturgo, ela deixa de lado, momentaneamente, algumas de suas marcas, se desloca, traz o texto do clássico brasileiro para a centralidade da criação artística e se prepara para estrear “Boca de Ouro”, em maio, no CCBB.

Direção. Quando, em 1977, Ione e o músico argentino Rufo Herrera fundam o Oficcina Multimedia, ela atuava e ainda fazia assistência de direção. Mas sem escolher propriamente, ela dirigiu “Biografia”, de certa forma, a pedido das mulheres do grupo. “Acho que a direção é isso. Não é o que o diretor quer, mas é a pessoa que viu a melhor maneira de resolver uma cena, o que é mais adequado, e isso quase gera um acordo entre todo mundo”, conta.

Até 1985, ela ainda se dividia entre atuação e direção, até que, em cena, sentada em uma cadeira torta como se imitasse um quadro mal colocado, preocupada com o que se passava na coxia, na cabine, Ione deixou de atuar. “Eu estava em cena e ficava pensando que inferno era atuar e ficar tensa, pensando em todo o resto que estava acontecendo. A partir disso vi que não queria trabalhar com teatro daquele jeito e comecei a fazer apenas direção”, lembra.

A mudança de rumo se deu em “Domingo de Sol”. E depois vieram “Trilogia Joyce”, “A Casa de Bernarda Alba”, “BaBACHdalghara” e tantos outros que carregam um olhar de mundo pelas lentes de Ione.

“Eu tenho uma preocupação com a linguagem, é nossa maneira de se comunicar com o mundo. Nossa diferença maior, que nos distingue, é essa capacidade de construir uma linguagem que seja um código de comunicação. Quando digo que o diretor é quem viu uma linguagem mais adequada, não é o gosto dele. Fui me convencendo disso com o tempo. Eu chegava com uma ideia, e a coisa tomava uma outra força no processo. É algo que se impõe. Uma semente que, de repente, cresce e você perde o controle”, reflete Ione.

“A linguagem é como um veículo de comunicação que a gente não sabe para que serve exatamente. Pra compreender a arte tem que entender a utilidade do inútil. Ela entra nesse domínio de coisas essenciais que têm um universo tão amplo e que escapa de pragmatismo”, completa.

Sem romantismos, o lugar da direção, para Ione, é o da responsabilidade. “Está para mim entre um carma e um destino. Implica em dúvidas e escolhas, o diálogo com os atores e um senso de observação. São certezas provisórias. Quando vai para o palco, tem que ter certeza que é aquilo, se não, você não vai. Mas é um paradoxo. Ao mesmo tempo, você tem certeza que vai mudar e se depara, de novo, com o desconhecido. A exposição já é um sintoma de humildade. Quem não tem humildade não se coloca nesse lugar”, pontua.

Mulher. Embora aponte alguns nomes de diretoras na cena de BH, Ione reconhece que a legitimação do lugar da mulher é uma conquista. “Ainda há diferenças de tratamento quando é um homem quem dirige”, afirma. Mas ela traz outro ponto de vista que diz respeito à desestabilização de estruturas normativas que atravessam as discussões de gênero, no campo das artes.

“A criação da mulher é voltada para a estabilidade, ter filho, casar, ter chão. É a que educa, equilibra o marido. Não estou concordando, mas existe uma cultura que pede para que a mulher seja mais sensata. Ela é educada pra ter bons modos, ter coerência, não falar palavrão. Mas a arte é o domínio do sem chão, da incerteza. É como Madame Bovary, que é a mulher que quer ser desestruturada, que não quer passar pela vida cumprindo aquele papel que foi escrito para ela. É a mulher que está em busca do caos, do abismo. A mulher passa por essa desestruturação quando chega no universo da arte, do caos, da instabilidade, do desconhecido, algo muito contraditório nesse universo da mulher ligado à previsibilidade, ao bom senso, à harmonia, a essas palavras que são um peso para a mulher”.

 

Um Shakespeare brasileiro

Ione já havia tentando construir Nelson em outra ocasião, mas desistiu. “Há um abismo entre os mineiros e os cariocas. Achava que nunca conseguiria dialogar com Nelson, embora ele fosse pernambucano, mas se mudou para o Rio muito cedo. E eu não conseguia conversar com ele naquela maneira que ele falava do incesto, das traições. Quando me aproximei do Rio, ele começou a ficar mais familiar”, comenta.

Mas foi quando montou “Macquinária 21”, a partir de “Macbeth”, que ela se abriu para o dramaturgo brasileiro. “Percebi que Nelson é um Shakespeare brasileiro. Fui no Shakespeare, em outro país e cultura, pra entender algo que estava aqui do meu lado. Ele trata da alma humana, da ambivalência, da multiplicidade. São personagens fortes e frágeis. Acho texto difícil, mas o dele é uma conversa, um palavreado corriqueiro, interrompido, um texto vivo e atraente”, comenta, se referindo, em específico, a “Boca de Ouro”, obra que ela lê como a necessidade de conhecimento das origens. “O personagem quer identificar de onde veio. Ele foi abandonado e se transformou e um gângster. Tem um perfil que reflete o poder, mas que tem esse trauma de não saber sua origem. É uma situação de força e fragilidade. Ele impõe respeito pelo que tem, não pelo que é”.

“A peça traz três versões da morte dele e três olhares sobre o comportamento dele. É como hoje, que está todo mundo atônito com o que está acontecendo no Brasil. Quem está com a verdade? Mostra como a mídia é oportunista, uma referência à experiência que Nelson tinha como jornalista”.

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