Cinema

Mulheres que fazem história

Quatro longas responsáveis pelo 'ano das mulheres' no Oscar 2018 chegam a Belo Horizonte na próxima quinta

Por Daniel Oliveira
Publicado em 11 de fevereiro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Para quem esteve em Marte nos últimos meses e ainda não se deu conta, 2018 será o ano do Oscar das mulheres. Considerando que os atuais favoritos ao prêmio de melhor filme são “A Forma da Água” e “Três Anúncios para um Crime”, esta deve ser a primeira vez que um longa protagonizado por uma mulher leva a principal estatueta da Academia desde “Menina de Ouro”, em 2005. Um sintoma de como as narrativas mais importantes, aclamadas e de maior impacto em Hollywood, em tempos de #MeToo, são femininas.

E o público brasileiro vai poder conferir as protagonistas dessa pequena revolução a partir da próxima quinta, quando “Três Anúncios”, “Lady Bird – A Hora de Voar”, “Eu, Tonya” e “Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi” chegam aos cinemas no mesmo dia. Os três primeiros trazem o trio de indicadas a melhor atriz Frances McDormand, Saoirse Ronan (favoritas) e Margot Robbie; além de Laurie Metcalf e Allison Janney, que protagonizam um dos duelos mais acirrados do ano pelo Oscar de coadjuvante, como duas mães complexas e difíceis.

“Lady Bird” é comandado ainda pela realizadora-revelação de 2017, a atriz Greta Gerwig, que concorre nas categorias de direção e roteiro original (onde tem grandes chances de vencer). Mas o mais pioneiro (e talvez o melhor) deles é “Mudbound”. A adaptação do romance de Hillary Jordan pela cineasta Dee Rees (do ótimo “Pariah”) pode fazer dela a primeira negra a vencer o Oscar de roteiro adaptado, além de ter rendido a única indicação da história para uma mulher, Rachel Morrison, a melhor fotografia. O longa ainda fez da diva do R&B Mary J. Blige a primeira indicada a um prêmio de atuação (coadjuvante) e canção original (“Mighty River”) no mesmo ano.

Perspectiva negra. “Mudbound” conta a história de duas famílias do Mississipi, uma branca e uma negra, durante e após a Segunda Guerra Mundial. Só que o livro de Jordan é narrado apenas do ponto de vista dos personagens brancos e, ao ser convidada para comandar o filme, Rees disse que só aceitaria se pudesse dar o mesmo peso às duas famílias.

E esse foi o grande pulo do gato da cineasta. Em offs poética e literariamente escritos, o longa assume o ponto de vista tanto de Laura (Carey Mulligan), a mulher arrastada pelo marido Henry McAllan (Jason Clarke) para uma plantação de algodão no meio do nada, quanto de Florence (Blige), mulher de Hap Jackson (Rob Morgan), arrendatário da fazenda dos McAllan. Tanto de Jamie (Garrett Hedlund), irmão de Henry que volta da guerra como herói, mas sofrendo com o alcoolismo e o transtorno de estresse pós-traumático, quanto de Ronsel (Jason Mitchell), filho de Hap, que foi tão ou mais heroico que Jamie no front, mas ao voltar, encontra o mesmo racismo e é tratado com o mesmo preconceito que deixou ao partir para o conflito.

Rees mostra como cada um desses personagens tem sua história e seu ponto de vista sobre o que se passa ali. E quando todos eles se chocam naquela fazenda e naquele tempo, só duas coisas podem acontecer: a guerra, na incapacidade de compreensão e no ódio mútuo; ou o amor, na possibilidade de empatia pelo encontro, e da descoberta de que nossos ódios nos separam, mas nosso amor é um só – nas palavras de Florence, que fala pouco, mas é a fortaleza moral da história, “o amor é uma forma de sobrevivência”.

Ronsel e Jamie vencem uma guerra e voltam para casa achando que ela acabou. Mas o que encontram é uma outra guerra, a Civil, que os Estados Unidos nunca conseguiram encerrar – com Henry e seu detestável pai Pappy (Jonathan Banks) se dirigindo aos Jackson como se eles ainda fossem escravos. E o fato de que Ronsel e Jamie são os únicos que entendem isso – e um ao outro – será, tragicamente, o causador de toda a desgraça do final.

Em sua belíssima fotografia, Morrison pinta essa oposição branco/negro na separação entre terra e céu. Para os brancos, a terra significa posse, poder. Para os negros, ela é uma prisão – e o céu, uma esperança, uma possibilidade de fuga e redenção. É dele que vem a chuva, como se fossem lágrimas de Deus, pela injustiça dessa divisão, que transforma a terra em lama – a lama da imundície e da imoralidade humana, que suja e contamina os personagens brancos o tempo todo, tentando fazê-los entender que estão bem mais próximos dos negros do que imaginam. “Quando eu penso na fazenda, eu penso na lama. Eu sonhava em marrom”, divaga Laura.

O talento com que Rees salta entre todos esses temas e pontos de vista – e o grau de dificuldade envolvidos nisso – é impressionante. Seu “Mudbound” é épico não só por seu visual deslumbrante, mas porque transforma os recônditos da alma e a vida interior dos mais diversos personagens em algo poeticamente universal.

O que significa que, se fosse dirigido por um homem branco, o longa não só teria sido indicado a melhor filme, como teria ganhado. Não foi porque sua distribuição foi comprada pela Netflix nos EUA, e o preconceito com a plataforma impediu que “Mudbound” recebesse todas as indicações que merecia. E muito possivelmente porque, de todos os pontos de vista presentes no filme, Rees só não assume dois: o de Henry, o pseudo-herói branco dono de terras, cuja perspectiva sempre foi a (exaustivamente explorada) no cinema; e o de Pappy, um velho racista e consumido pelo ódio, que existe, mas não precisa de um megafone. Hollywood pode estar pronta para assimilar mais pontos de vista femininos, mas ainda não parece propensa a abrir mão do patriarcado por completo.

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