Evento

Música eletrônica ressignifica espaços públicos esquecidos 

Festas como a MASTERplano, a 1Ø1Ø e a Psicodélica Genérica ocupam estacionamentos, praças, prostíbulos e até cachoeiras com beats eletrônicos

Por LUCAS SIMÕES
Publicado em 29 de maio de 2016 | 03:00
 
 
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Praça do Peixe, Lagoinha, quinta-feira de Corpus Christi, 16h. No ambiente onde viciados em crack, moradores de rua e comerciantes transitam entre a presença flutuante de policiais, caixas de som e computadores são instalados enquanto chegam engradados de cerveja e água. Em pouco menos de duas horas, dezenas de pessoas ocupam uma região abandonada da cidade para dançar música eletrônica. E reinventar a cidade, por que não?

Essa é só uma pílula da festa MASTERplano, que, como outras em Belo Horizonte, começou a levar a música eletrônica para as ruas. Na cidade, a experimentação foi reconhecida pelo Quarteirão Eletrônico, projeto do DJ Felipe Reis, que atraiu 120 mil pessoas à Savassi, na Virada Cultural de 2014.

Apesar de haver movimentos pioneiros em São Paulo, como as festas Voodoohop, Metanol e Carlos CAPSLOCK, a principal inspiração da MASTERplano vem da cena de Berlim, que desde a queda do muro, em 1989, iniciou um processo de transformar lugares como fábricas, igrejas e construções antigas, em clubes abertos de música eletrônica. Para a estudante de arquitetura Carol Mattos, 23, uma das integrantes do coletivo, a festa é uma união de gêneros experimentais de eletrônica com a ocupação do espaço público. No meio dos beats, tem James Brown, reggae e música indiana à prova do público.

“Muita gente acha eletrônica ruim, então não estará nas boates dançando. Ao mesmo tempo em que apresentamos gêneros que rebatem essa ideia, a festa junta o conceito de ativar espaços ociosos na cidade, muitos circundados por viadutos, aonde ninguém vai por medo. A Lagoinha era um bairro boêmio, com bares, praças. Foi fazer esse complexo de viadutos e sumiram as pessoas. A festa é uma maneira de trazer pessoas de volta a esses espaços”, diz Carol.

Formada por um coletivo de 16 pessoas, a MASTERplano fez cerca de 20 eventos gratuitos na cidade no ano passado, divulgando as festas horas antes pelo Facebook, e ocupando a rua Pouso Alegre, na região Leste, com mais de mil pessoas – além do viaduto Santa Tereza, a Funarte e a Vila Dias, na linha do metrô, entre o Santa Efigênia e o Santa Tereza.

Os custos de cada festa podem variar entre R$ 3.000 e R$ 5.000, incluindo alvará de autorização da prefeitura e aluguel e transporte de seis caixas de som. Por isso, além de recolher uma caixinha espontânea do público, o coletivo vai organizar campanhas de crowdfunding para os próximos eventos. “Nossa premissa é que a festa seja gratuita para estimular as pessoas a estarem aqui sem se preocupar com o preço exorbitante do ingresso”, completa Carol.

Outra festa que ganhou as ruas democraticamente foi a 1Ø1Ø, organizada por João Victor Reis, 20, mais conhecido como DJ Omoloko. Paga, mas ao preço máximo de R$ 15, o evento foi a alternativa para que o DJ e outros dois amigos pudessem sanar as contas do apartamento número 1010, que dividiam no centro da cidade. Até que a festa cresceu, incorporou dez amigos e, em seis edições desde novembro do ano passado, ocupou de estacionamentos a prostíbulos na Guaicurus, até uma escola de dança flamenca na Savassi.

Nascido no Rio Grande do Norte, Omoloko diz que, quando chegou à capital, há dois anos, a cena eletrônica era desanimadora em boates e clubes tradicionais. “A cena estava morta, não conseguia ir para um bom lugar escutar uma música. A partir daí, conheci os meninos do MASTERplano, e a gente foi fruto dessa indignação de querer fazer diferente, relacionar o eletrônico com o espaço que vivemos e às vezes é invisível”, diz o DJ.

INTERIOR. Para além da capital mineira, o interior do Estado também une o eletrônico à ocupação de espaços públicos. Em Pouso Alegre, no Sul de Minas, o DJ Mujique é um dos nomes por trás do “Audiovisual Livre”, que reúne DJs com videomakers em performances por praças da cidade, com a presença de 300 pessoas por evento.

Desde 2010, a “Festa Psicodélica Genérica” trouxe ainda mais atenção à região. O cenário para a música eletrônica é a Cachoeira do Pedrão, que recebeu mais de 500 pessoas no Réveillon 2015, com 50 DJs no line-up, incluindo nomes de São Paulo, além de reunir a cena de Itajubá, São Lourenço e até convidados da Argentina.

“O objetivo é levar o experimental. Misturado ao eletrônico, temos dub, reggae, rock n’ roll. Quando fugimos do convencional, como ir para uma cachoeira ou uma praça, agregamos demais o público. No Réveillon mesmo, choveu por cinco dias e ninguém arredou o pé por dois motivos: o lugar é surreal de bonito e a música estava ali para unir as pessoas”, diz Mujique.

Produtores e festivais também olham para os espaços abertos

Para além das ações espontâneas de amigos, a música eletrônica na rua também chamou a atenção de Aluizer Malab, idealizador do festival Eletronika, que desde 1999 uniu nomes como DJ Malboro e Juçara Marçal em formatos experimentais que não prezam apenas a música eletrônica. Mesmo com críticas à curadoria do festival, inclinado à cena gringa, no ano passado a festa foi levada para a praça da Liberdade, com objetivo de agregar tribos diversas. Neste ano, a ideia é repetir a dose, voltando a ocupar um lugar da cidade verde e ao ar livre – mas ainda mantido em segredo pela produção.

“O perfil do festival tem uma pesquisa de locação. A gente frita para conseguir lugares novos. Ano passado foi muito legal fazer uma projeção no Palácio do Governo (praça da Liberdade), algo que nunca tinha acontecido na cidade. E foi bom também fazer no MegaSpace, que mistura ambiente fechado com aberto, e dá liberdade ao público. São experimentações. Acho bom quando a gente consegue quebrar a resistência desse tipo de uso de espaços, modificá-los para melhor. Tem vários lugares onde eu ainda não fiz nada. O Inhotim é um deles, tenho vontade de fazer alguma coisa lá”, revela Aluizer.

O DJ L. Lopez, que integra o duo Clubbers com John Patrício, está acostumado com os circuitos de música eletrônica pelas boates de Belo Horizonte e do interior mineiro. Apesar disso, sua experiência em grandes festivais, como Universo Paralelo e Tomorrowland, revela um público exigente pela interação entre os beats e o ambiente da festa.

“Esses são eventos que provam como a rua e o espaço aberto têm a ver com a energia da música eletrônica. Talvez meu maior evento tenha sido o BH Dance Festival, quando toquei para 15 mil pessoas na Esplanada do Mineirão. Dá para você sentir a dimensão da música, o alcance que uma batida tem”, diz o DJ mineiro.

Na visão de Marcos Boffa, curador do tradicional festival Eletronika e figurinha carimbada da cena eletrônica desde a década de 1990, a ocupação de espaços públicos pela música eletrônica acontece na contramão do boom que o país vive na cultura dos mega shows de DJs, a exemplo de David Guetta e do brasileiro Alok, por exemplo. “Há pelo menos oito anos, com o fenômeno do EDM, houve esse lance dos grandes DJs injetados na cultura da música, superproduções, shows caríssimos e status de bandas de rock internacionais”, comenta Boffa.

“Mesmo estando fora de BH, imagino que seja parecido com o que acontece em São Paulo: as casas noturnas têm dificuldade para montar programações e fidelizar público, diante dos grandes festivais e grandes DJs que volta e meia estão na cidade. No meio disso, porém, as festas na rua são ótimas porque vão além da música, muitas vezes gratuita, de qualidade e com alto teor de experimentação, mas também fazem parte de manifestações artísticas de recuperação do espaço público. É cidadania”, completa.

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