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Na contramão das hierarquias

Amir Haddad Ator e diretor teatral

Por Julia Guimarães
Publicado em 22 de maio de 2010 | 16:44
 
 
 
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Amir Haddad Ator e diretor teatral Com uma longa trajetória de militância teatral, Amir Haddad possui lugar singular entre os diretores brasileiros. Além do trabalho com o grupo "Tá na Rua", que discute a ocupação de espaços públicos, Amir é reconhecido pelas supervisões que realiza com renomados artistas. Ele esteve na cidade recentemente para um encontro na Semana Interplanetária de Palhaços.

- Por que você escolheu a rua como espaço das suas encenações?

Eu não escolhi a rua, eu acho que a rua me escolheu. Eu não traçei um projeto ' vou pra rua'. Eu vinha mexendo muito no teatro com a questão do espaço, porque eu já tinha mexido muito na dramaturgia, sempre mexi na função do ator e chegou um momento inevitável de tratar a questão do espaço. E na década de 1960, o teatro brasileiro e mundial mexeu muito com a questão do espaço, a gente não ia pro teatro, a gente dizia 'ah, tem uma peça aqui  que queria fazer no porão do Teatro Municipal, no elevador do Museu de Arte Moderna'. O espaço era uma discussão crucial. Nós retrocedemos muito com o pensamento neoliberal, o espaço começou a ficar confinado em teatros com o público muito distante e o que a gente sempre pensou é o contrário: em qual espaço esse espetáculo vai se dar? É uma questão que predominou muito na
década de 1970, no momento mais intenso da humanidade. Então eu fui experimentando vários espaços e chegou uma hora eu pensei 'só não conheço o verdadeiro espaço, que é o espaço aberto e verdadeiro das ruas. Aí fui e o interessante disso tudo é que todas investigações arquitetônicas sobre espaço estava sempre cercado pela mesma plateia, que frequenta os espaços fechados. Quando resolvi investigar essa questão do espaço, estava com necessidade de ver como era esse espaço aberto. Mas o que aconteceu de magnífico e que ao experimentar o espaço aberto eu encontrei uma coisa que não esperava encontrar: eu encontrei a população. Eu encontrei o eterno público do teatro em todas as épocas, que o povo livres da estratificação social no meio da rua. O espaço me trouxe muita coisa a respeito de arquitetura, urbanidade, essas coisa toda, mas me trouxe principalmente a ideia de que é possível fazer teatro para uma plateia heterogênea e se fazer teatro para plateia homogênea determina o que você faz e no que você é prisioneiro desse grupo todo igual. O seu teatro também fica na mesmice e na
falta de saída que esse grupo tem, porque aí é uma coisa puramente ideológica, você está trabalhando com uma fatia mínima de público e se você trabalha na rua, você abre o leque para trabalhar com a heterogeneidade, com a diversidade humana, com vários grupos sociais, sem divisão de classe, onde todos ocupam o mesmo lugar - o rico, o pobre, o cachorro, o menino que cheira cola, a dona de casa - então você começa a ter uma representatividade
humana muito maior naquele espaço, ou seja, nós atiramos no que vimos e acertamos o que não vimos, o que não vimos foi a beleza de fazer teatro para uma população sem estratificação social, foi uma conquista definitiva para nós e uma salvação, para nós que estávamos fazendo teatro para uma plateia morta que foi a plateia que a ditadura brasileira desenvolveu ao longo de tantos anos.

- E a ideia era também romper com as convenções que a sala italiana
tradicional representava?

Exatamente. Porque na rua, o público assiste ao espetáculo de outra maneira, com a alma mais aberta, com mais possibilidade, sem estar se sentindo num mundo todo dele, ele está dividindo o mundo com alguém e isso muda a atitude da plateia. Mas isso é muito importante, é ideologia e essa percepção foi maravilhosa, porque eu aprendi a entender o Shakespeare, Molière, a Idade Média, os gregos, porque eles faziam um teatro para uma plateia sem nenhuma restrição de público.

- Em que contexto surge o "Tá na Rua"?

No final da década de 1970, estávamos discutindo muito o teatro como linguagem. E como a gente vivia num regime autoritário fascista, queríamos fazer um teatro que não fosse parecido com esse regime. E a gente via que embora não fôssemos autoritário nem fascista, ideologicamente os valores que essa gente apresentava era na verdade os valores que a gente queria ter também. Aí começamos a questionar esses valores, dentro da organização do
grupo e do nosso trabalho e aí a gente começou a estudar uma peça que chamava "Morrer pela Pátria" que era um folheto fascista de extrema direita que era um incidente da revolta da Intentona Comunista em 1935 e reafirmava todos os valores fascistas da sociedade brasileira conservadora Nós achamos que trabalhar aquele material era interessante para ver como a gente era igual e como poderia ser diferente. E foi o estudo desse material e a desmontagem desse texto que acabou revelando dentro da gente, ao derrubar o fascismo da ideologia que nos educava, uma liberdade muito grande, que proporcionou esse teatro popular, sem classes. E no final da década de 1970, estivemos em BH fazendo ensaios abertos, que era nossa maneira de discutir o fascismo sem chamar atenção da censura também.

- Mas como você passaram para a rua?

As investigações da gente estavam levando a ir pra rua. A gente improvisa muito, até hoje improvisamos muito, então não tinha montagem, a gente ia pra rua com nossos tambores, os atores e nossos trapos, roupas velhas que nos doavam. E a gente despia a camisa de força da ideologia e vestia os trapos coloridos da fantasia e começar a ver história do ser humano. Então, trabalhamos, improvisamos, tivemos que desenvolver um ator, uma dramaturgia. A primeira peça que levamos para a rua era uma história de cordel chamada "A moça que beijou um jumento pensando que era Roberto Carlos". E na primeira vez que a gente levou ela pra rua, entrou uma mulher bêbada, mendiga e começou a cantar as músicas do Roberto Carlos e ela sabia todas e era tão mais forte, tão mais importante que nós, que a gente teve de interromper
nosso espetáculo e aplaudir o dela. A partir daí, começamos a nos questionar. Não podemos levar uma dramaturgia fechada para rua, temos que pensar sempre na possibilidade de uma intervenção dessa natureza e saber aproveitar, porque você não pode ir pra rua apagando-a, não pode levar a sala italiana, a quarta parede e instituir a boa educação de uma plateia pequeno-burguesa, tem que manter o espetáculo totalmente aberto. Então abandonamos totalmente a dramaturgia e começamos a improvisar. E estamos até hoje fazendo isso para criar uma possibilidade dramatúrgica nova, conforme a gente vem fazendo há 30 anos.

- E a dramaturgia de vocês, além dessa abertura, possui também um caráter
épico...

Sim, isso é épico, porque não é ilusionista, é narrativo, coloca questões, trabalha com o genérico dos gestos sociais, trabalha as relações entre indivíduo e a sociedade, não individuo com individuo só, e como se faz para resolver esse conflito. E costumo dizer que espetáculo é uma forma mais que perfeita da organização das relações entre o público e o privado.

- Num período em que a ocupação do espaço público é cada vez mais rara, como
vocês fazem para se manter na rua?

 Isso é um horror, está cada vez pior, nem na ditadura nos sentimos tão oprimidos quanto agora. Todos os governos preferem polícia na rua do que artista, podemos ser perseguidos como se fôssemos desordeiros e somos tratados dessa maneira porque estamos vivendo a decadência final dessa civilização. Não tem nenhuma decadência que seja tolerante, todas as
decadências são autoritárias e fascistas, porque os governos começam a perder o comando das coisas, porque não tem mais nenhum valor que segure o cidadão, o processo civilizatório está interrompido, nada pode nos segurar. Então, o que vem? A repressão, a ordem de uma gaveta vazia, como dizia Brecht, que nos impede de ir pra rua, nos impede de pegar um tambor e ir pra rua conversar com a população, não fazemos nada que atrapalhe o trânsito, o sono das pessoas, nada que incomode, pelo contrário, levamos uma possibilidade do cidadão voltar a amar a cidade, ter auto-estima e estar feliz consigo mesmo. Não nos permitem fazer isso. O Rio de Janeiro está nas mãos dos fascistas, é disso que se trata: termos uma prefeitura fascista que trata a população com todo o desprezo. E nós, que fazemos teatro de rua, somos incluídos no rol da população que deve ser tratada com desprezo: pretos, pobres, ignorantes e artistas, tudo farinha do mesmo saco.

  - Mas vocês tem sido vetado de se apresentar na rua? Porque quando
perguntei, me referia mais a uma violência social do que a do Estado...

  É violência do Estado, violência das pessoas, jamais. Nós já trabalhamos com as pessoas mais violentas, já subimos com o "Tá na Rua" todos os morros do Rio de Janeiro e em nenhum momento fomos agredidos como somos pela polícia atual do Rio de Janeiro. Então, a situação é grave.

- Você vem a BH para um encontro dentro da Semana Interplanetária de
Palhaços. Qual é a sua relação com a linguagem do clown?

Eu adoro o clown mas ele é um artista solitário na maior parte das vezes e a minha relação é que todos meus atores são clowns porque têm discurso próprio, mas dentro de uma coletividade. No encontro, quero discutir a questão dos espaços de opinião, de autoria, não tenho exatamente o perfil do festival, mas como é interplanetário, eu sou um ET que estou chegando... E
vou trazer a discussão sobre espaço no sentido politico do teatro, que é arte publica.

- Você foi um dos fundadores do Teatro Oficina. Essa referência ainda exerce
algum diálogo em seu trabalho atual?

Nenhuma, porque continuei o meu trabalho, com minhas características e o Zé Celso (diretor do Oficina) também. Nós temos inquietações semelhantes e soluções diferentes. O Zé Celso, por exemplo, põe a rua dentro do teatro dele, o teatro dele é fechado e é uma rua. E o sonho dele é construir uma praça inteira que seja teatro. Eu faço o contrário, ponho o teatro na rua e sonho com uma cidade contaminada de teatro em todos, onde possa ocorrer o exercício pleno da cidadania e fazer sem distinção de classe, por todos, nas praças, nos espaços abertos, a construção utópica da cidade feliz, então eu ponho o teatro na rua eu não trago o teatro para dentro do meu teatro.

- E no que se refere à característica, que é tanto sua quanto do Zé Celso,
de carnavalizar o teatro, como isso aparece no trabalho do "Tá na Rua"?

  Primeiro eu jamais diria copiar uma forma popular, então a pessoa faz um roteiro de escola de samba e acha que esta fazendo espetáculo popular, isso não garante nada o que é especial da escola de samba não é a forma, mas os conteúdos éticos que produzem aquela estética. Então quando se fala em carnavalização, as pessoas pensam que é sair cantando marchinha de Carnaval e fazendo coisas que ninguém faz, só faz no Carnaval, excessivamente provocativas e iconoclastas. Não é isso, a gente entende carnavalização como forma de expressão libertária, então usa-se essa imagem. Quando chega o Carnaval, o prefeito da cidade abdica de seu trono e e passa a chave da cidade para o Rei Momo, que é aquele que reina sobre as loucuras dos homens e que permite essas manifestações. Então, a carnavalização é isso: a liberdade pessoal de cada um que se manifesta. Mas no teatro essa manifestação não é só isolada e individualista como um ator de Carnaval que sai num bloco fazendo as coisas sozinho no meio da rua. Isso é colocado dentro de uma responsabilidade coletiva que é o espetáculo. Então, é a sociedade de homens livres com responsabilidade coletiva. Esse daí é um grande Carnaval. Então, a partir dessa ética, as coisas vão acontecendo: o canto, a dança, a maneira de se vestir, a maneira de se comportar, a formação de grandes cortejos, o movimento continuo em direção a um lugar que ninguém sabe onde é, mas que caminha para essa utopia no final da estrada. A gente começa a ver outros valores que não são os da burguesia, do status, do dinheiro, da carreira, da estrela, da vaidade, do ego, quando a gente abandona isso se vai para uma região onde mesmo os destaque estão carnavalizados, você desce de cima do carro alegórico e volta ao coro, à
sociedade que você pertence.

- No texto de história do grupo "Tá na Rua", presente no site do grupo, você
fala: "pense em futebol, religião, festa, ritual, nunca pense em teatro".
Por que?

Se você pensar em teatro, vai pensar no espetáculo que a burguesia protestante faz, esse teatro que a gente vê nos palcos, pensa o prédio com o palco dentro, nem pensa numa forma de expressão. Mas lá dentro desse prédio tem uma maneira de se expressar que é ligada ao teatro, mas que é de um grupo social e de um momento, muito mais ligado a uma ideologia de um grupo de dominação do que às necessidades humanas mais profundas. Então, se pensar em teatro vai ter como modelo isso que todo mundo faz. E o nosso é completamente diferente, mais parecido com a atuação, com a entrega que você encontra numa celebração religiosa, no Carnaval, onde o individuo e a sociedade se encontram pra tentar chegar num lugar melhor, e com a liberdade de improviso, de jogo, agilidade mental que exige de você um jogo de futebol, em que você está o tempo todo refazendo seus caminhos e crescendo em direção a um outro resultado que você não sabe qual é. Então o futebol ele é básico mesmo, nossos jogadores de teatro eles se miram muito no futebol, não tem ninguém dormindo em cena, dominado pelo teu salário, você tem que estar olhando o tempo todo para onde você vai e para onde a bola tá
indo, pra poder ter essa liberdade, que ficou sumida com Carnaval. E traz o clima de celebração, você tem uma elevação coletiva e não de individuo egóico.

- Você também é constantemente convidado a realizar direção e supervisão
artística de espetáculos de atores renomados, como Marcos Palmeira e Beth
Goulart. Como faz para transitar nesses diferentes estilos teatrais?

Esse transito é muito bom, porque tudo que desenvolvo no meu trabalho com o "Tá na Rua" eu levo para salas fechadas. Porque a minha ideia de teatro e a minha visão de mundo modificaram muito, então eu levo isso pros meus espetáculos e levo também essa ideia de preferir trabalhar com ator que tem opinião, do que ator que sabe rir, sabe chorar e faz isso na hora que eu mando. Então, eu ajudo esses atores a realizar o sonho deles. E mesmo quando
dirijo, os meus espetáculos não são direções tradicionais, eu questiono muito a hierarquia de autoridade dentro do coletivo de trabalho. Eu tenho uma participação, um papel, mas os outros também têm. Então, eu faço uma espécie de supervisão, em que cada um coloca suas coisas e eu coloco a minha opinião também. Mas não dirijo da maneira tradicional, eu dirijo com os
atores, que tem uma liberdade muito maior quando trabalham comigo do que quando trabalham sufocados por um ego do diretor.

- E o que te leva a aceitar um determinado projeto?

Dinheiro é uma coisa importante. Mas se não acredito no projeto, não faço. Então, é muito uma questão de sobrevivência, mas eu escolho e tenho podido escolher, por isso que é muito mais legal fazer uma supervisão do que dirigir, porque na supervisão a escolha não é minha, é do ator, da atriz. Por exemplo, a Clarice Niskier escolheu o texto de um rabino para fazer um
espetáculo, provavelmente eu não escolheria nunca esse material, no entanto eu vou lá, ajudo ela e aprendo demais, mas não preciso fazer essa escolha, eu não sou grife, eu não quero fama, quero o conhecimento.

- Você possui uma trajetória de militância política dentro do teatro. O que
mudou na forma de pensar politicamente o teatro, tendo em vista os novos
contextos surgidos nas últimas décadas?

Muda tudo no sentido de que onde a utopia permanece é nos artistas em todos os tempos. Nós temos a responsabilidade eterna de manter a utopia, de acreditar que é possível um mundo melhor. Não tem um artista que não tenha isso dentro de si, mesmo que não saiba. Ele sonha em chegar num mundo melhor e mais organizado. Então, com essas quedas todas que houve, a responsabilidade da criação artística é muito maior no mundo em que vivemos, nós somos os zeladores desse sonho. E é muito difícil conseguir manter esse sonho numa sociedade como essa agora que nos impede de ir pra rua falar isso e reascender a esperança popular. Mas é nosso ofício, é nossa tarefa, é a função da nossa pulsão, a nossa pulsão teatral tem uma função, é mantermos organizados nossos pensamentos utópicos e mantermos viva a esperança que nos faça caminhar, do contrário, seremos sempre massacrados como estamos sendo
agora.

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