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Na estrada, há 50 anos

Uma das mais revoluiconárias obras literárias do século 20, On the Road, de Jack Kerouac, completa cinco décadas de publicação

Por DOUGLAS RESENDE
Publicado em 26 de outubro de 2007 | 20:14
 
 
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Numa primavera de 1951, no seu apartamento em Nova York, Jack Kerouac batia alucinadamente à sua máquina de escrever. Movido por doses colossais de benzedrina, suando uma camisa atrás da outra, e ao som do bebop, o escritor datilografava em ritmo frenético, num rolo de papel para telex que, ao final de três semanas, fora preenchido com uma prosa contínua em espaço um e sem parágrafo, somando um total de 40 metros ininterruptos de papel que se derramavam pelo quarto.

Essa é uma das muitas lendas que se formaram em torno da criação de uma das obras literárias mais revolucionárias do século passado - "On the Road - Pé na Estrada" (L&PM), o segundo romance de Jack Kerouac, que iria ser chamado de "a voz de sua geração", além de influenciar várias outras. "Difícil imaginar a obra de Bob Dylan, Charles Bukowski, Jim Morrisson, Lou Reed, Tom Wolfe, Hunter Thompson, Win Wenders, Jim Jarmush, sem ’On the Road’. No alvorecer dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a se tornar cantor, fundindo rap e poesia beat", escreve Eduardo Bueno, na introdução da edição brasileira que ele traduziu.

Embora tenha sido escrito em 1951, o autor só conseguiu convencer um editor a apostar no seu romance seis anos depois, e a obra completa agora exatos 50 anos de sua publicação. Como conseqüência direta de "On the Road" (junto com "Uivo", de Allen Ginsberg), comemora-se também 50 anos da popularização do movimento beat, que culminou, anos depois, na explosão da contracultura.

Com a efeméride, "On the Road" e o seu autor voltam a pautar discussões sobre o seu valor estético, sua importância enquanto catalisador de transformações culturais e comportamentais e sobre os muitos mitos que rondam a obra e que o próprio Kerouac ajudou a criar. Com o debate, alguns desses mitos são colocados em xeque, enquanto outros são reiterados ou confirmados. Mas algumas coisas são certas: os detalhes do papel de telex e da escrita ininterrupta podem, de fato, ser comprovados.

O rolo de papel original ainda existe e, em 2001, foi arrematado num leilão por James Irsay, dono do time de futebol norte-americano Indianapolis Colts, que ofereceu a quantia recorde de U$ 2,43 milhões (antes disso, o mais alto preço pago por uma obra literária era de U$ 1,98 milhão, no leilão de uma cópia de 1920 de "O Processo", de Franz Kafka).

No Brasil, a L&PM acaba de comprar os direitos sobre o manuscrito original, que, segundo o editor Ivan Pinheiro Machado, ainda precisa ser traduzido e não tem data prevista para lançamento. "Isso ainda não foi publicado nem nos EUA e já temos uma prova do manuscrito", conta o editor. "Do ponto de vista editorial, será um trabalho de fôlego, porque vai exigir um cotejo pra levantar o que está e o que não está na tradução do ’On the Road’", pondera.

Obra biográfica
A publicação do manuscrito original de "On the Road" vai trazer uma série de subsídios importantes para a compreensão não só da obra em si como de todo o movimento beat. Todo mundo sabe que a obra de Kerouac é essencialmente biográfica e retrata sua relação com as pessoas que estavam ao seu redor, principalmente os outros beats. Prevenindo-se de imbróglios legais, ou seja lá o que estava na sua cabeça, Kerouac utilizava pseudônimos para inserir os seus amigos na narrativa.

No romance, ele próprio é Sal Paradise, enquanto Allen Ginsberg é Chad King e Neal Cassady é Dean Moriarty. Assim os personagens são tratados no "On the Road" "oficial", mas no manuscrito original, Kerouac não se deu ao trabalho de criar os pseudônimos e coloca todas as cartas sobre a mesa. Assim, Ginsberg é Ginsberg, Cassady é Cassady e o narrador, Kerouac.

"Acho que o que realmente interessa (nessa publicação do manuscrito original) para os leitores e estudiosos e para a posteriadade é a curiosidade ’bio-bibliográfica’. Trata-se da confirmação pública dos personagens reais", comenta Pinheiro Machado, que pondera, que a versão oficial é a que fica. "O ’On the Road’ continua sendo o ’On the Road’ que conhecemos." Como diz o editor da L&PM, o manuscrito não contém apenas os dados biográficos mencionados, mas também bibliográficos. Segundo Eduardo Bueno, quando há 50 anos a Viking Press finalmente decidiu lançar o livro nos EUA, Kerouac foi forçado a suprimir cerca de 120 páginas, sendo que outras tantas o próprio editor se encarregou de cortar, sem falar na inclusão de "milhares de vírgulas inúteis", como lamentou Kerouac.

Com a supressão, o livro perdera muito de sua espontaneidade e do "fluxo de consciência" que caracterizam a obra de Kerouac. Por isso, "sua ’prosa espontânea’ praticamente inexiste em ’On the Road’, embora tenha se materializado em outros livros, especialmente ’Visons of Code’, lançado postumamente", relata Bueno. Outra lenda ligada à criação da obra seminal de Kerouac diz que o escritor escrevera o livro em apenas três semanas. E completamente chapado de benzedrina, um tipo poderoso de anfetamina. De fato, o manuscrito original fora escrito entre 9 e 27 de abril de 1951.

Mas fora editado e retrabalhado significativamente durante um longo período até ser publicado. Em relação à benzedrina, um artigo recente da revista "New Yorker" ("Drive, He Wrote", assinado por Louis Menand) afirma que isso não passa mesmo de mito e que, na verdade, Kerouac escrevera o livro sob o consumo de muito café e cigarros. "Acho muito legal e oportuna essa celebração dos 50 anos, porque certos mitos começam a se desfazer. Se é verdade isso da benzedrina, eu acho que já muda bastante. Eu conheço razoalvemente bem de drogas, e se o cara escreveu só com cigarro e café é um processo criativo bem diferente do que escrever sob efeito de benzedrina", comenta Bueno, em entrevista ao Magazine.

"O benzeno é uma anfetamina muito poderosa, um estimulante que faz com que esse fluxo narrativo característico do livro seja mais facilmente entendível e explicável. Se é verdade que ele não escreveu tanto sob o efeito, muda a minha visão sobre o livro", completa o tradutor, ponderando que todos as biografias afirmam o uso da benzedrina, tanto a mais clássica e pioneira, como a de Ann Charters, de 1973, quanto as que a sucederam.

Estimulado por benzedrina ou não, a escrita automática, ditada pela linguagem coloquial do inglês norte- americano, além do fluxo de consciência, são as principais marcas estéticas de "On the Road" e das outras obras de Kerouac, "um cara que conseguiu como ninguém incorporar a prosódia, o som da língua norte-americana, à literatura", diz Bueno.

"A literatura dos Estados Unidos até então pagava tributo direto à literatura de língua inglesa européia. O Scott Fitzgerald, de quem eu gosto muito, e o Ernest Hemingway, de quem eu não tenho muita paciência, eram totalmente europeizados, ao passo que o Kerouac conseguiu trazer de novo a literatura norte-americana para essa coisa lá da raíz, de Walt Whitman e Washington Irving. E não é só o som, é também a fluência, a freqüência, o fluxo de pensamento", completa o tradutor, que depois de ler "On the Road", nos seus 20 anos, decidiu cair na estrada e refazer o caminho de Keroauc pelas estradas da América, "como aquela jornada do peregrino à Meca", compara o tradutor beat.

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