Ney Matogrosso tem uma cicatriz no peito. A marca é resultado de uma cirurgia recente a que o cantor teve que se submeter para retirar o que foi diagnosticado como “um sinal de câncer”, conta Ney. “Entre saber que era um câncer e resolver extirpar, houve um momento em que refleti sobre a possibilidade da morte. E, te juro, nesse intervalo em que tudo poderia ser e acontecer, eu olhava para aquilo com a maior tranquilidade. Foi uma experiência que me confirmou que eu não tenho medo da morte”, garante. “Agora não tem mais nada, fez um rombo enorme no meu peito, mas já cicatrizou”, revela. 

Uma das provas dessa plena recuperação é o espetáculo que o intérprete, do alto de seus 77 anos, traz neste fim de semana a BH. “Lido com a idade da melhor forma possível. Ainda não tenho nenhum obstáculo físico. Essa é uma questão que também mudou com o tempo, lembro que meu pai, com 60 anos, era velho. Entendo que a minha pele está mudando, mas não me sinto velho. As pessoas, em geral, estão vivendo mais, com saúde e disposição”, avalia. “Estou ótimo”. 

Tanto é verdade que a turnê “Bloco na Rua”, cujo título foi retirado de um verso da canção de Sérgio Sampaio (1947-1994) que abre o show, foi assim batizada pela “sensação de algo em movimento” que o sempre inquieto artista pretendia transmitir. “O mesmo impulso que eu tinha no início da carreira continua presente. Claro que, com o tempo, eu amadureci, entendi que havia outras maneiras de me comunicar. Eu era muito agressivo porque, se eu não fosse, seriam comigo, era uma estratégia”, admite.

Presente

Depois de cinco anos rodando o país com “Atento aos Sinais”, na turnê mais longeva de sua trajetória, Ney finalmente conseguiu virar a página. Com um roteiro que já vinha sendo costurado há dois anos, ele concorda que, “misteriosamente, as canções selecionadas conversam muito com o momento do país, embora não fosse a minha intenção”. 

Em “Jardins da Babilônia”, de Rita Lee e Lee Marcucci, Ney canta: “O palhaço ri dali/ O povo chora daqui/ E o show não para/ E apesar dos pesares do mundo/ Vou segurar essa barra”; “O Beco”, de Herbert Vianna e Bi Ribeiro, fala sobre “ruínas de igrejas, seitas sem nome/ Paixão, insônia, doença/ Liberdade vigiada”; “Tem Gente com Fome”, poema de Solano Trindade musicado por João Ricardo, já registrada por Ney em 1979, parece retratar uma realidade inalterada, descrita no próprio título da canção. 

No bis, surge ainda uma contundente “Coração Civil”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. “Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?/ Viva a preguiça, viva a malícia que só a gente é que sabe ter/ Assim dizendo a minha utopia, eu vou levando a vida”, sugerem os versos. “A letra é o que sempre me move. O critério foi escolher músicas que eu gostasse de cantar, mesmo que já tivessem sido gravadas. Acho que o que as une é o fato de a maioria pertencer aos anos 70, mas não precisava ter esse apelo, o elo sou eu”, sustenta Ney. “Canto muito o passado, mas não o reproduzo. Nas versões que faço, procuro trazer uma amostragem pop, às vezes rock”.

Política

Das 20 canções da apresentação, apenas “Inominável”, de Dan Nakagawa, era inédita. “O que estou cantando é a livre expressão, o direito de falar e fazer o que bem entender”, sublinha Ney, que não tem sentido, até agora, “essa liberdade em risco”. Cético em relação a uma vitória de Jair Bolsonaro antes das últimas eleições, ele considera que “o desespero e o ódio ao PT pavimentaram essa situação” e faz uma avaliação sobre os primeiros meses do governo federal. 

“A questão indígena ficou hipersensível, mas isso está acontecendo em todos os sentidos. Achava que eles fossem mais preparados, é um sobe e desce, um vai e vem, a impressão é que não tem um direcionamento certo para lugar nenhum”, aponta. Sobre a situação do ex-presidente Lula, Ney prefere se manter cauteloso. “Estou vendo que ele já cumpriu um ano de prisão e pode ser solto. Tudo é muito confuso, não tem nada fácil de captar, mas, se a lei é esta, ela deve valer para todos. Libera ele, e vamos ver o que acontece”, afirma.

Por outro lado, a criminalização da homofobia, atualmente em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), tem o apoio do cantor. “Tem que criminalizar, igual ao racismo”, opina ele, que vê com naturalidade a insurgência de novos movimentos feministas e LGBTs. “É parte da democracia, um governo que se diz democrático precisa saber conviver com a diversidade”. Com uma religiosidade própria, Ney diz não crer “nesse Deus católico, com o dedo apontado” dizendo o que se deve fazer. “Acredito num princípio organizador”, conclui. 

Serviço

Turnê “Bloco na Rua”, de Ney Matogrosso, nesta sexta (14) e sábado (15), às 21h; e domingo (16), às 19h, no Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro). De R$ 140 (meia) a R$ 350 (inteira)

Ouça versão de Ney Matogrosso para “Tem Gente com Fome”: