A História é fecunda em desgraças improváveis, nos lembra "Complô Contra a América" (Companhia das Letras), obra em que Philip Roth dá nova versão, apenas aparentemente absurda, a um período crucial na existência de seu país " os três anos que antecedem a entrada dos Estados Unidos sob Roosevelt na Segunda Guerra Mundial.
O que conta o narrador, à época uma criança judia de nove anos chamada Philip Roth, abre uma dimensão plausível (a começar da ambiência na própria família do autor) e perturbadora à sombra da era Bush e sua cruzada homicida em nome da liberdade lançada no pós-11 de Setembro, embora este livro magnífico esteja muito acima de qualquer espécie de manifesto, diga-se logo.
Os EUA refeitos por Roth, com personagens rigorosamente lastreados em biografias verazes, nos sugerem uma hipótese verossímil, ou possibilidade congelada no tempo a que a ficção anima com inquietante realismo.
"O medo domina estas lembranças, um medo perpétuo", conta de saída o menino Philip, referindo-se à insegurança que invadiu lares judaicos ante a aclamação do piloto aéreo e herói nacional Charles A. Lindbergh como o candidato republicano que ousará enfrentar o presidente Roosevelt nas eleições de 1940.
Lindbergh " alguém real e reconhecidamente anti-semita, que visitou mais de uma vez a Alemanha nazista, foi condecorado pelo Reich e defendeu o isolamento norte-americano no conflito mundial ", na imaginação histórica de Roth bate Roosevelt folgadamente e assume a Casa Branca cercado de secretários inimigos dos judeus, a começar pelo industrial Henry Ford.
O pequeno Philip compreenderá que a infausta sucessão de eventos que afetam sua família vai para sempre podar-lhe o gozo da ordem e segurança que permeia uma infância feliz e que reinava entre os Roth.
Os imigrantes judeus, na média orgulhosos da América que lhes dera pátria e prosperidade, fiéis aos ideais de democracia e justiça, de repente se tornam presas da incerteza e paranóia induzidas por estranhos interrogatórios feitos por agentes do FBI e " é verdade " graças a um governo que baixa pacotes de "americanização", através da Agência de Absorção Americana e do projeto Colonização 42, em que empresas são incitadas pela administração federal a realocar trabalhadores judeus e suas famílias em remotas cidadezinhas do interior, com o propósito de minar a solidariedade étnica resguardada em "guetos" como a própria comunidade em que os Roth se estabeleceram em Newark.
Sem falar no assombroso acordo de não-agressão firmado com Hitler, na Islândia, ao qual Hitler comparece assessorado por Joachim von Ribbentrop, ministro nazista das Relações Exteriores. Ribbentrop depois será homenageado por Lindbergh em noite de gala na Casa Branca (sic).
Brutalidade
As pressões sobre a criança, em meio à desagregação que Philip sente dentro de casa e no bairro, na dimensão literária dessa micro-história filtrada numa mente fantasiosa, conferem ao livro seu teor mais valioso. Mas são a intolerância gerada pela cegueira, o ódio e a brutalidade o tema central de "Complô Contra a América".
Sem a proteção do caráter, a iluminação da cultura e sem a fé na boa vontade entre os seres humanos " este livro nos leva a refletir " as páginas da história serão escritas pela ignomínia e pela barbárie.
Com habilidade e aguda perspectiva, ao relacionar, mas somente nas camadas mais profundas do texto, os EUA atuais à América redentora de Roosevelt, Roth induz o leitor a de fato perceber como razoáveis os relatos sobre explosão de um "pogrom" através do país resultando no assassinato de mais de uma centena de judeus.
Este, o saldo da reação facistóide à campanha de certo jornalista inflamado, o judeu Walter Winchell, depois de se lançar como pré-candidato democrata contra Lindbergh.
Quando ideais de liberdade são relativizados e ideologias, sejam de inspiração satânica ou divina, decidem se pessoas são boas ou más, superiores ou inferiores, estarão dadas as condições para a infâmia e o horror varrerem nossos sonhos de bemaventurança.
Romance histórico ou parahistórico" Por certo. Mas "Complô Contra a América" é sobretudo, à semelhança dos precedentes "Casei com um Comunista" e "A Marca Humana" " livros que igualmente trabalham fundos históricos, respectivamente o macarthismo e a ditadura relativista do politicamente correto no governo Clinton e o escândalo Monica Lewinsky ", o exercício comum à grande literatura de explorar os desvãos do espírito, a fragilidade, a culpa e a dor eternas.
AGENDA " "Complô Contra a América", de Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 482 págs., R$ 56,50.