Crítica

O desafio de encarnar a potência de Billie Holliday

Espetáculo Billie Holliday, a Canção, tem última sessão hoje, no Teatro da Cidade

Por Eliana Fonseca
Publicado em 13 de outubro de 2019 | 16:58
 
 
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Billie Holiday, com seu timbre rouco e etéreo, é uma das maiores cantoras de jazz de todos os tempos. A voz perfeita, um dom natural descoberto por acaso durante um teste fracassado para ser dançarina em uma casa noturna, contrastava com uma vida nada perfeita, de abandono, violações, sofrimento e humilhações, interrompida aos 44 anos por uma cirrose e uma insuficiência cardíaca, decorrentes dos “excessos” para suportar tamanho martírio.

Não vamos falar do uso de heroína nem tampouco de álcool, que foram, de certa forma, sua válvula de escape, mas da talentosa e atormentada mulher que até hoje nos embriaga com sua voz.

Sua história é triste, mas necessária. Precisamos saber sobre Billie porque sua vida é um modelo mais comum do que parece. Embora tenha vivido no início do século XX, existem hoje milhares de Billies em todos os cantos do planeta: mulher, negra, estuprada na infância, prostituída na juventude. Billie não deu conta de conviver com a tormenta da injustiça e da violência. O veneno não estava em seus vícios, mas dentro de si mesma. É sobre a vida dessa intrigante mulher, que transformou sofrimento e solidão em melodia, que trata o monólogo “Billie Holiday, a Canção”, do dramaturgo sergipano Hunald de Alencar, com a atriz Tânia Maria interpretando os últimos dias de vida da diva, e que termina hoje sua temporada no Teatro da Cidade.

Mas não pense você, caro espectador, que irá assistir a um musical glamouroso sobre Billie, em que são relembrados somente os sucessos musicais da diva do jazz. Não. Num ambiente minimalista, em um leito hospitalar, você verá a manifestação do delirium da cantora em fim de carreira, que teve tudo subtraído de sua vida (a infância, adolescência, a dignidade e o pudor), nos momentos antes da morte, refletindo sobre os acontecimentos de sua vida e o significado da sua canção.

É um exercício difícil, em que a cantora e atriz Tânia Maria, que tem uma voz com um timbre muito parecido com o de Billie, retoma algumas músicas do repertório famoso da intérprete, entremeado por um diálogo íntimo em que a cantora, totalmente atormentada pelos monstros do seu passado, fala da pobreza, do estupro, da prostituição, do desamor, dos vícios. Ela está morrendo, internada num hospital de Nova York. Sobra amargura. As canções não são um alento. Pelo contrário, compõem as lembranças de alguém que viveu altos e baixos, mas não superou seus traumas. Aprofundou-os. Morreu com a sombra de que poderia ser presa a qualquer momento pela posse ilegal de narcóticos.

Tânia Maria está muito bem na pele da diva. Ela faz uma Billie triste, às vezes confusa, alucinada e até meio histérica, vencida pela vida. O cenário, que traz detalhes de um quarto simples de hospital, é também o seu último palco. E Tânia, mignon com seu 1,50 metro de altura, se agiganta ao incorporar a mulher que percebe a grandeza de ser quem é, mas que também sabe que não há mais tempo de vencer seus piores traumas e pesadelos

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