De pronto, a pulsão da música convida à dança, sensação corroborada pelas guloseimas dispostas em bandejas sobre as mesas e pelas luzes, que remetem a uma festa. Mas bastam alguns minutos no ambiente para o espectador se dar conta de que, na verdade, as paredes – cobertas de papelão, material com o qual os moradores de rua costumam se proteger do frio – trazem perfurações similares às produzidas por armas de fogo. Não bastasse, a ambiência de boate se dá pelo uso de sinalizadores giroflex e, em meio à batida, os ouvidos mais aguçados conseguem detectar que, em vez de uma letra de música tradicional, o que se ouve é uma sequência de chamadas policiais.
Sim, “Festa”, instalação da paraense Berna Reale, não quer deixar o público impassível. A obra, que pode ser visitada no Viaduto das Artes até o dia 30 de setembro, marca a primeira individual na capital mineira da artista, conhecida por performances como “Quando Todos Calam”, na qual, no entorno do mercado Ver-O-Peso, em Belém, deitou-se despida sobre uma mesa, com vísceras distribuídas sobre o corpo, o que atraiu não só olhares instigados, mas também uma série de urubus. Ou, ainda, “Palomo”, na qual desfila em um cavalo vermelho para discorrer sobre o poder do Estado.
Com “Festa”, a ideia é, mais uma vez, promover um deslocamento interno no visitante, sair da zona de conforto que ela acreditar ser função precípua da arte. De passagem por Belo Horizonte no último final de semana, para montagem e abertura da instalação, a artista, que já representou o país na Bienal de Veneza, conversou com a reportagem do Magazine.
Conheça um pouco a obra
Confira, aqui, alguns momentos.
“Festa” já foi mostrada em 2015, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, confere?
Sim, só que aqui há um novo contexto. Lá, estava dentro de um museu. Aqui, trago a situação para debaixo de um viaduto, um lugar de acesso à rua, que pode atrair pessoas que habitualmente não vão a museus e galerias.
Aliás, você tem dito ser esse um de seus principais objetivos atuais, não se limitar aos espaços expositivos tradicionais.
Com certeza! Amo a rua, as pessoas comuns. Se tivesse grana – porque são iniciativas mais caras –, seria meu grande espaço de atuação. Aliás, é o porquê de amar performance de rua.
Uma pergunta óbvia, mas necessária: o que “Festa” tem a dizer ao espectador?
Na realidade, no meu ponto de vista, estamos vendo crescer cada vez mais um prazer relacionado à violência. Ela se tornou mais íntima do que nunca. Veja, a violência é histórica, está atrelada ao curso da humanidade, mas, hoje, entendo que estabelecemos uma intimidade maior com ela. As pessoas compartilham imagens, notícias de violência, é como se existisse um sabor com isso, como se fosse uma grande festa. O que me assusta. O trabalho questiona isso: que sabor é esse, que prazer é esse que as pessoas sentem em compartilhar imagens de um estupro, de uma decapitação, de alguém que se joga para a morte?
Como é a reação das pessoas a essa provocação?
As mais diversas possíveis. A priori, quando se entra, a melodia é cativante. Muita gente chegava dançando e só percebia os relatos de violência quando paravam para escutar o que a letra estava falando. O ritmo levava a dançar, mas, ao ter consciência da letra, paravam e se questionavam: “Estou dançando no meio disso!”. Tem esse choque, essa ironia.
Por esse prisma, pode-se dizer que a instalação dialoga com outro trabalho seu, “Terra Sem Jejum”, em exposição no Villa Aymoré, por conta de você ser uma das finalistas do prêmio Pipa 2019.
Sim, há essa relação com a violência. Ali, são caixões para crianças decorados com doces que elas habitualmente consomem, brigadeiros, pirulitos... Se relaciona ao fato de que não existe um só dia sem vermos essa cena, sem perdermos uma criança para a violência. Estamos perdendo a infância, é disso que se trata. Então, tem uma relação com essa exposição, sim, a gente está perdendo nossos jovens. A vida está muito fácil, efêmera, e não porque é rápida, mas porque é tirada.
Berna, você é formada em educação artística, mas, ao mesmo tempo, atua como perita criminal no Pará. O que esse ofício agrega ao seu fazer artístico?
Sim, sou perita criminal há dez anos, e isso só me leva a questionar ainda mais a sociedade, pois me faz ficar em contato direto com a realidade. Antes, como todo mundo, recebia a informação (sobre a violência) filtrada – ou por meio da mídia, ou por meio de dados das secretarias de Segurança ou da Saúde. Ou seja, informações que passaram por uma instância primária e, portanto, já são secundárias ou mesmo terciárias. Quando você atua como perito, você está na instância primária. É a realidade nua e crua, sem filtros. E é muito impactante. O que acontece é que você, enquanto artista, geralmente tem outra relação com a vida, não tem um contato assim, tão direto, com a violência. Nesse ponto, somos muito privilegiados. Lá, você tem esse outro contato.
O país tem registrado, nos últimos anos, alguns episódios de intolerância direcionados a algumas iniciativas das artes visuais. Como vê esse momento?
Veja, acredito que a história da humanidade é cíclica. Esse fenômeno está acontecendo também em outros países. É um retorno que a direita tenta conquistar. E, assim, conquistas da categoria, como apoios e editais, são cortadas, reduzidas, o que, claro, é muito ruim. Mas o querer censurar é pior ainda. Agora, se há um lado “positivo”, digamos assim, é que esse momento pode servir como uma injeção de estímulo à criação. Sempre acho que os artistas que têm mais poder de embate são os que viveram em países com problemas como a fome, guerras... Por esse lado, o momento atual é de potência criativa e de luta, de se posicionar. É hora de ir para cima, de ir para as ruas. Não é possível se acovardar. O medo existe, mas ele tem que ser impulsionador.
Festa
A primeira exposição individual da artista paraense Berna Reale em Belo Horizonte está em cartaz no Viaduto das Artes (av. Olinto Meireles, 45, Barreiro – fone: 3144-6156). A visitação pelo público pode ser feita até o dia 30 de setembro. Sempre de segunda a sexta, das 10h às 17h.