O artista belo-horizontino Renato Negrão é poeta, compositor, artista visual e educador de arte. Autor de “Vicente Viciado” e outros cinco livros de poemas, ele apresenta agora seu mais novo trabalho, “Odisseia Vácuo”. Negrão fala sobre sua trajetória, seu processo criativo e sobre a importância do diálogo entre os múltiplos gêneros literários.
O que diferencia esse seu novo livro de outros projetos, como “Vicente Viciado”, por exemplo?
Acho que refinei a experiência de composição em relação aos poemas anteriores, como do livro “Vicente Viciado”, que mantém uma atitude que dialoga com a poesia dos anos 70. Abordei a sutileza do humor para compor um poema um pouco mais longo, o que é menos comum na minha produção. No passado, era mais nítido um pensamento mais rítmico nos meus textos, hoje certamente identifico uma busca por mais plasticidade.
Em que medida o livro flerta com a poesia concreta?
São raros os de minha geração que não tenham referência minimamente na poesia concreta e em outros movimentos experimentais da poesia brasileira, poema-processo, práxis, neoconcretismo etc. \Nada é intencional mas, quando se vê, o diapasão está presente. O projeto gráfico, de uma maneira geral, tem referência das leituras do Décio Pignatari, do Júlio Plaza. A intenção de que o branco da página fosse um elemento ativo dialoga com Mallarmé, mas não é intencional.
Como surgiu o projeto, a ideia para o livro? Ele demorou para ser produzido?
Demoramos uns oito meses entre o primeiro encontro e o lançamento em São Paulo. Procurei alguém que admirasse, que fosse também um escritor, que fosse rigoroso no capricho, que tivesse referências próximas. E encontrei no Preto Matheus, da SQN Edições, isso e muito mais. Matheus, que é um preto, é consciente como eu, e isso amplia e redimensiona conceitualmente o projeto de um modo muito mais sutil do que se possa imaginar.
Fale sobre o projeto gráfico do livro.
A epígrafe é do poeta português Alberto Pimenta, os dados da edição, que são as datas e a numeração acabam aparecendo como um índice enigmático. Não há título e não há o nome da editora, e também meu nome não aparece na capa. Dentro do livro aparecem em contraposição dialógica renato/vácuo e negrão/odisseia. A partir do significado do meu nome e sobrenome (Renato = renascido, e Negrão = breu), me permiti fabular as relações entre buraco negro e o vácuo quântico, a aventura ínfima das partículas e dos astros e a aventura do signo linguístico.
Que dificuldades você encontrou na feitura do livro? Tentei dialogar com outros editores. A dificuldade durou até eu entender que era com o Preto Matheus que eu tinha que desenvolver o projeto. Depois desse processo, só houve desafios conceituais e financeiros.
Em que medida o seu périplo recente pelo Brasil ajudou no surgimento do livro?
O livro já estava pronto quando comecei a viajar. O nteressante foi perceber a recepção em lugares diferentes do Brasil.
Como você definiria o termo “livro-objeto”?
Todo objeto que rompe com a forma tradicional do livro e se abre para relações em que a palavra requisite outros elementos plásticos, sonoros, materiais. Contudo, não me atenho muito a categorizações rígidas.
Fale um pouco sobre a performance que você vai apresentar no lançamento.
A performance com Miguel Javaral explora o universo da vocalização e do silêncio e convida o expectador a participar como ouvinte de uma leitura em que o desafio é dilatar o tempo da leitura até o limite em que ele, o ouvinte, não se disperse.
Resenha
Arte que extrapola conceitos, poesia que abrange o vasto
O universo do artista belo-horizontino Renato Negrão não se resume ao verso tradicional. Hoje, o poeta lança o livro-objeto “Odisseia Vácuo”, seu sétimo trabalho, com sessão de autógrafos, bate-papo e performance, com Miguel Javaral. Após um ano circulando pelo Brasil, no projeto Arte da Palavra, do Sesc, quando passou por 12 Estados brasileiros, o escritor está de volta a Belo Horizonte. A obra, com projeto gráfico realizado por Preto Matheus, já foi lançada em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia e Olinda, entre outras cidades.
Negrão, desde muito tempo, vem pesquisando uma literatura expandida, em diálogo com as artes plásticas, a música e o teatro, em recentes trabalhos com artistas como a cantora Juliana Perdigão (no disco “Folhuda”) e o ator Alexandre de Sena (do Grupo Espanca de Teatro). “Odisseia Vácuo”, feito artesanalmente, numa tiragem limitada, também pode ser lido como um livro-performance, que dialoga com os modos de fazer e pensar a poesia. “Trata-se de um poema que celebra a história e, ao mesmo tempo, questiona o modo com ela é contada”, explica Negrão.
“Odisseia Vácuo” traz apenas um poema. Um livro, uma obra, um troço inominável, um “algo” que prioriza a força e – mais que tudo – a fragilidade e a beleza das lacunas, das reticências, do não dito que grita, que sussurra, que sugere. Negrão inventa um rol de regras – o que não deixa de ser um belo paradoxo – para instaurar a desordem, o descontrole, o desmando. Uma espécie de acrasia, de intemperância lhe cai bem.
Musicalidade e concretude, duas palavras que dizem muito sobre “Odisseia Vácuo”, duas forças que se fundem, que se adicionam. Negrão brinca com múltiplas associações de signos de mil sentidos. O poeta monta uma estratégia peculiar e meio que dança, numa justa luta de esgrima com o verbo e o verso solto.
Certas poesias subvertem as engrenagens, que nunca descansam numa dialética de claros e escuros, que pairam entre o óbvio e o nunca visto. Negrão parece que gosta do lúdico e convida o leitor para esse carrossel. Negrão procura liames e mostra que tudo pode estar interligado através da força da arte.
Em “Odisseia Vácuo”, Negrão domina e aborda o controverso e a descontrução do próprio conceito de livro através do silêncio, dos espaços em branco que atravessa, veja bem, as palavras, o verbo, a poesia. O poeta carrega algo de ambicioso que o auxilia nesse périplo. Ele sabe e não sabe. E quando percebe, nada diz; ele “apenas” deixa brechas, lacunas para que o leitor tome tento das possibilidades infinitas de um livro que prima pelo capricho e pela diferencial. Sim, é poesia, ainda que tenuamente poderosa.