No último domingo, o quinto capítulo foi disponibilizado no streaming. Faltam, portanto, três episódios para fechar o arco narrativo da primeira temporada de "TodXs Nós", minissérie brasileira que a HBO estreou no dia 22 do mês passado. Criada por Vera Egito, Heitor Dhalia e Daniel Ribeiro, com direção geral de Vera Egito, a comédia dramática parte de um momento na vida de três personagens para abordar temas ligados ao universo LGBTQIA+, como o uso da linguagem neutra, que aparece no título; e questões das mais diversas (assédio, veganismo, feminismo, sororidade). O cenário é São Paulo, e, de uma forma mais recortada, o apartamento que os personagens Maia (Julianna Gerais) e Vini (Kelner Macêdo) dividem. O cotidiano dos dois é alterado com a chegada de Rafa (Clara Gallo), uma prima de Vini. Pansexual e não-binárie, Rafa saiu da casa do pai e da madrasta com o objetivo de tentar ser uma tatuadora de respeito e, mais que isso, perscrutar mais a fundo a sua sexualidade - no entanto, a moça ainda depende do cartão de crédito do pai para dar seus passos nessa direção.
Vini, por sua vez, é um cara dublê de administrador de empresas e ator - no início da minissérie, está ensaiando uma peça na qual reivindica o papel principal. Homossexual, sente um certo desconforto quando o namorado aventa a entrada de um terceiro vértice na relação - no caso, um ator de telenovelas famoso, mas que, por conta de sua imagem, esconde sua sexualidade a sete chaves, enquanto procura nas artes cênicas o lastro que o trabalho na telinha não lhe confere.
Vegana, Maia trabalha como programadora em um aplicativo de transporte, e sua veia feminista pulsa com energia quando descobre que a empresa está acobertando o assédio de um dos motoristas a uma usuária. Naturalmente, em torno dos três transitam outros tantos personagens, pelos quais mais temas são abordados.
Em entrevista recente à imprensa, dividida em dois blocos, aos quais cada jornalista teve o tempo estimado de 15 minutos para colocar suas perguntas, criadores e atores falaram sobre a empreitada. Presentes no primeiro bloco, estavam os já citados Vera Egito e Daniel Ribeiro, assim como Roberto Rios, vice-presidente corporativo de Produções Originais da HBO Latin America. No segundo, Clara Gallo, Julianna Gerais e Kelner Macêdo.
De acordo com Daniel Ribeiro, desde o início a intenção foi tratar os temas acoplados com delicadeza e verdade, para que a iniciativa fosse realmente inclusiva, a partir do grupo de roteiristas. Outro ponto norteador importante, ressaltaram, foi construir uma equipe que, além da técnica e do talento, contemplasse também a diversidade, para dar legitimidade à série. "A gente sempre quis que o elenco fosse diverso", diz ele. Vale lembrar, por exemplo, que há vários atores trans no cast.
Vera Egito diz se tratar de uma série de dia a dia, com pinceladas de humor no tratamento a vários conflitos que permeiam jovens nos dias atuais, e que, num espectro mais amplo, são universais. "Você tem, na história, uma mulher negra, um menino gay, uma pessoa não binária... Então, não tem como não tocar em temas como racismo, transfobia... Mas talvez o grande tema da série sejam essas famílias que (involuntariamente) se formam em grandes centros, como São Paulo. Não são famílias de sangue, mas pessoas que se agrupam e que , a partir de desafios, se ajudam".
Clara Gallo conta que, para construir a sua Rafa, fez uma imersão nesse universo. "Foi um processo muito rico e bom, passei a compreender melhor esse universo". Na sequência, seu maior desafio foi vestir a pele de uma personagem impulsiva, "que tem uma coisa muito forte de se jogar". "A Rafa tem muita sede de viver, tanto que vai para São Paulo em busca de vivenciar tudo isso. Eu sou virginiana, penso mais, tomo cuidados", brinca ela.
A bela Julliana Gerais, que interpreta Maia, acrescenta que um de seus maiores desafios foi entender as diferenças que guardava com a sua personagem. "Porque, na verdade, éramos muito próximas. Maia é uma mulher negra, vegana, feminista. E eu sou mulher, sou negra, sou feminista, então, já estou (inserida) nessas lutas, que me penetram há muito tempo e que, na verdade, não são recentes. O que mudou foi a forma como conversamos sobre elas hoje em dia. Durante os estudos (para a personagem), fui me aprofundando em algumas questões e posso dizer que saí modificada, por ter passado a entender algumas sutilezas (das questões tratadas), por exemplo. Não só por conta da Maia, mas pela série como um tudo".
Kelner relata que o processo de preparação foi muito intenso. "A gente acabava vivendo mais no set que em casa, ensaíavamos cinco vezes por semana, sete horas por dia. Mas foi importante para a gente entender todo o desenrolar dos personagens. Como a Clara em relação à Rafa, o Vini é totalmente diferente de mim. Ele é lunar, e eu, solar. Então, tentei equilibrar, achar um meio termo, para ele ficar interessante, mesmo sendo 'chato' e ranzinza. Você vê que ele reclama de tudo, e começa a entender e questionar o lugar que dão a ele enquanto gay. Porque, socialmente, a gente vive em um mundo que separa as pessoas em caixinhas. Mas existe um grande espectro de possibilidades de existência. Não é porque é gay que vai ser igual ao outro. E a construção do personagem me fez questionar muitas coisas, da vida, do sistema. Em um certo momento, o Vini percebe que viveu, até ali, os sonhos e as projeções da mãe. Ele faz teatro, a mãe sempre quis isso, mas, uma hora, ele percebe que odeia teatro, e que ama, sim, números".
O ator frisa, porém, que a série não se arvora de querer responder questões. "E, sim, de propor diálogos, modos de conversa, espaços de troca e de fala dessas outras existências possíveis. Que as pessoas se abram para isso, pois entendo que há uma grande revolução acontecendo e muitos ainda não estão conscientes disso". No bojo dessa revolução à qual ele faz menção, estaria, claro, a própria série "Todxs Nós". "Se a gente pensar, no Brasil, não há muitas iniciativas na TV que trazem personagens como os da série como protagonistas, e, sim, à margem. Aqui, não, eles não só existem, como estão em lugar muito potente de proposição de conversar".
Em tempo: "Todxs Nós" está na plataforma HBO, com episódios semanais de 30 minutos disponibilizados a cada domingo. Vale lembrar que contém cenas de nudez e sexo.