“Que gracinha o seu bebê! Você tem rede de apoio para cuidar dele enquanto trabalha?”. Essa foi a pergunta que Ana*, 28 anos, ouviu logo após ser questionada se tinha filhos, durante uma entrevista de emprego. A pergunta “fofa” pode disfarçar um preconceito ainda presente na cultura organizacional de diversas empresas. Segundo a Pesquisa Mães 2024, realizada pelo marketplace Catho, quase nove em cada dez mulheres já foram questionadas se tinham filhos durante entrevistas de emprego. E pelo menos 40% das mães acreditam ter perdido oportunidades de promoção ou desenvolvimento na empresa pelo fato de terem filhos.
No caso de Ana, que tem um bebê de 9 meses, pouco tempo após essa entrevista, ela recebeu um e-mail informando que os currículos foram avaliados e que a empresa iria contratar “outros candidatos que se encaixam no perfil”. Ela acredita que o fato de ser mãe recente influenciou no resultado. “Eu era a única com filho bebê”, diz. Tudo isso aconteceu após ela perder o emprego assim que retornou de licença-maternidade. De acordo com a pesquisa da Catho, 23% das mães já foram desligadas após a licença-maternidade.
Quem também perdeu o emprego assim que voltou da licença-maternidade foi Maria*, de 30 anos. Ela conta que foi pega de surpresa. “Estava lá há 1 ano e 8 meses. Queria ter ficado mais, gostava de lá e estava doida para voltar a trabalhar”, conta. Após perder o emprego, ela voltou a procurar vagas e também se deparou, diversas vezes, com a pergunta sobre ter filhos. “Eu perdia a vaga quando falava que tinha um bebê”, afirma.
Ela lembra que, quando falava sobre a idade do filho, os recrutadores faziam “cara de preocupados”, perguntavam com quem ela deixaria a criança e comentavam: "muito pequeno, né?". Na última entrevista, a recrutadora gostou dela, mas disse que o bebê estava “atrapalhando”. “No final, ela resolveu me dar o voto de confiança e me deu a vaga. Ela me disse, depois, que estavam com medo de eu entrar e desistir por não conseguir ficar longe do filho”, relata.
Na visão da neurocientista e especialista em Recursos Humanos Alessandra Gasparini, esse tipo de pergunta, especificamente, não contribui para o processo seletivo. “Se a pergunta não leva ao objetivo final, para quê fazê-la, então? Mais do que bom senso, de forma geral, esse questionamento sobre filhos eu considero irrelevante e até preconceituoso, pois ele não traz à tona as competências e habilidades de quem está se candidatando à vaga”, opina.
Mesma opinião tem a diretora de gente, jurídico e compliance da empresa de tecnologia para RH LG lugar de gente, Maria Paula Oliveira. “Na minha visão, não faz sentido, porque, como regra, essa pergunta não é feita num contexto de interesse genuíno pela vida pessoal do candidato”, diz. “Ela já revela um viés discriminatório, um viés de preconceito no sentido de que a mulher teria menor disponibilidade ou menos aptidão para a vaga por conta da maternidade”, emenda, lembrando que essa não é uma pergunta feita para homens, normalmente.
A pergunta sobre filhos é pertinente em algum contexto?
Apesar de ser impertinente na maior parte das vezes, em contextos bem específicos, a pergunta sobre filhos pode até se encaixar no quesito de “pescar” habilidades dos candidatos. Em empregos que exigem interação com crianças, como recreação ou vendas em loja infantil, por exemplo, ter filhos pode até ser um “plus”. E só.
“Numa entrevista, por exemplo, para um cargo de vendedora em uma loja infantil, faz sentido e pode ser um diferencial, com certeza. É uma das poucas hipóteses em que eu acho que o fato de ter filhos faz sentido”, comenta Maria Paula.
“Ser mãe pode beneficiar uma mulher em diversos cargos e situações, seja como vendedora numa loja infantil ou como líder de uma equipe, já que podem haver sim, competências e habilidades que se sobrepõem a esses papeis”, comenta Alessandra Gasparini. “O que precisa ficar claro é que a capacidade, a competência e o desenvolvimento dessa pessoa em questão são o que de fato determinarão a sua trajetória de sucesso”, pondera.
As especialistas pontuam que, se pergunta sobre filhos é feita sob o pretexto de saber se a candidata tem disponibilidade para as tarefas que o cargo exige, como viajar, por exemplo, é melhor substituí-la por outra pergunta.
Alessandra pontua que, para uma vaga em que é preciso investigar se a pessoa poderá atuar em horários mais flexíveis ou irregulares, fazer longas viagens ou trabalhar fora de horário comercial, é melhor focar na questão da disponibilidade. “Eu exploraria por aí sem perguntar diretamente sobre filhos, o foco tem que ser o contexto profissional. Por exemplo, pergunte: essa função exige viagens frequentes. Você está confortável com essa rotina? Como é essa rotina para você?”, sugere.
Maria Paula corrobora com a opinião. “Faz muito mais sentido o recrutador questionar sobre a disponibilidade do candidato para viagens e para ficar períodos prolongados fora de casa. E isso não está relacionado exatamente com o fato de ter filhos ou não, porque cada um tem uma situação familiar, cada um tem sua rede de apoio”, contextualiza.
A dica para o recrutador, segundo a mestra em parentalidade e uma das fundadoras da consultoria Maternidade nas Empresas, Luciana Cattony, é se questionar antes de fazer esse tipo de pergunta. “Na dúvida sobre o que perguntar, reflita: você faria a mesma pergunta para um candidato homem? Em caso positivo, vá em frente”, propõe.
Acolhimento nas empresas é diferencial
Já a história de Maíra Souza Maia Gomes, 39 anos, é um ponto positivo nesse universo. Mãe de três filhos - um de 20, uma de 3 e o caçula de 2 meses -, ela tem o melhor dos empregos que poderia almejar atualmente. Maíra trabalha há quase 3 anos de forma 100% on-line como Gestora de Metodologia em uma empresa de tecnologia que a acolheu quando a filha do meio tinha apenas 9 meses. Segundo ela, o corpo gestor da empresa é composto por mulheres que entendem e acolhem as necessidades das mães.
Ela conta que tem uma relação super positiva no trabalho. “Já tive reunião com o CEO da empresa interrompida porque minha filha do meio caiu e machucou, e ele não só me liberou para verificar o que estava ocorrendo, como gravou todas as orientações que precisava me passar e me enviou”, comenta.
Mas nem sempre foi assim. Mãe desde os 19 anos, por quase 20 ela enfrentou todo tipo de entrevista de emprego, tendo ouvido diversas vezes a pergunta sobre ter filhos. “Na maioria das empresas em que trabalhei, tive que responder a pergunta se já tinha filhos e, ao dizer que sim, tive que responder a perguntas muito mais invasivas como: quem leva seu filho ao médico quando ele adoece? Quem fica com seu filho para você trabalhar? Como é a sua relação com o pai do seu filho?”, lembra. Segundo a pesquisa da Catho, 3 em cada 4 mães já foram indagadas, durante entrevista de emprego, sobre com quem os filhos ficariam durante o trabalho.
Por conta do filho, Maíra ainda optou por trabalhar em call center boa parte da vida, por causa da jornada de 6 horas diárias. “Para conseguir ter um tempo com o meu filho mais velho e levar ao médico e coisas do tipo”, explica.
A especialista Alessandra Gasparini também teve uma boa experiência durante a maternidade. Ela conta que teve dois filhos trabalhando no mundo corporativo e foi muito bem amparada nas duas ocasiões, o que a ajudou a se sentir acolhida e respeitada. E, por consequência, isso fez com que ela também contribuísse para a empresa.
Segundo ela, esse acolhimento é muito positivo para a empresa e traz a questão da humanização no trabalho e da empatia. “É o que estamos precisando no mundo organizacional. Então, acredito que toda essa segurança que me fez sentir muito segura emocionalmente fez toda a diferença no clima, fez a diferença nas equipes e acho que proporcionou um impacto muito interessante na marca empregadora”, afirma.
Equidade de gênero, no entanto, ainda é desafio
A especialista Luciana Cattony analisou os números da pesquisa da Catho. Segundo ela, eles mostram o quanto a responsabilidade do cuidado ainda é colocada exclusivamente sobre as mulheres. “É aquela crença de que depois que a mulher é mãe, ela não vai mais se desafiar, não vai mais se preocupar com o trabalho, vai querer pensar só na família”, diz.
“A gente não pode assumir isso como uma verdade absoluta para todas as mulheres, porque o que a gente vê nas empresas é justamente o contrário, a maternidade é combustível para essa mulher trabalhar com mais garra”, afirma. “Quando a gente assume que as mulheres não vão mais querer trabalhar depois dos filhos, a gente está contribuindo para aumentar as desigualdades de gênero”, diz.
“A equidade de gênero ainda está muito distante e isso não se refere apenas ao momento da contratação, mas também se refere às condições de trabalho que são dadas para as mulheres no mercado”, comenta. “Esses números deixam claro que a maternidade continua sendo um divisor de águas para a carreira das mulheres, enquanto a paternidade, por outro lado, raramente é tratada como um problema no ambiente corporativo”, sintetiza Luciana.
Mas, afinal, qual o papel do recrutador?
De acordo com Maria Paula Oliveira, o papel do recrutador é ser imparcial na condução do processo. Ele deve avaliar todos os candidatos de forma igual, independentemente de gênero, idade ou de outros fatores que não têm interferência na performance que a pessoa vai apresentar no trabalho. Maria enumerou os principais pontos que o recrutador precisa levar em consideração:
O que deve ser avaliado?
- Competências técnicas: a pessoa tem experiência e qualificação necessária para aquele cargo?
- Competências comportamentais: a pessoa tem experiência com liderança, se isso for necessário? Ela já liderou times grandes, se isso tiver a ver com o perfil da vaga? Ela tem habilidades de comunicação?
- Soft skills: são muito importantes e devem ser avaliadas de forma imparcial.
- Demandas específicas: se há uma necessidade de fazer viagens para uma vaga comercial, por exemplo, a pessoa realmente tem essa disponibilidade? O ideal é entender o contexto de vida do candidato para ver se ele está enquadrado ou não naquilo que é necessário para a vaga.
Veja os dados da Pesquisa Mães, da Catho:
- 86% das mulheres já foram questionadas se têm filhos durante a entrevista de emprego
- 75% também foram indagadas sobre com quem os filhos ficariam durante o trabalho
- 50% foram perguntadas se tinham planos para ser mãe
40% acreditam que perderam oportunidades de promoção ou desenvolvimento por serem mães - 52% deixaram de desempenhar alguma atividade como mãe por medo de perder o emprego
- 23% das mães já foram desligadas após a licença-maternidade
- 73% consideram a rede de apoio muito importante
*As personagens tiveram o nome real omitido para preservar a imagem.