Uma cidade é feita de muitas coisas. Há as concretas e óbvias — ruas, prédios, monumentos, moradores. E há as mais sutis — histórias, memórias, símbolos. A identidade de um lugar é formada por tudo isso, e Belo Horizonte, uma cidade relativamente jovem, que nesta quinta-feira (11/12) completa 127 anos, ainda constrói e reinventa a sua. No centro desse processo, estão negócios antigos e novos que dão cara a BH para seus próprios habitantes e também para quem vem de fora.

Em uma cidade que não tem praias ou belezas naturais que atraiam multidões, o coração da cidade é movido por pequenos empreendedores. Não é à toa que BH é conhecida como a capital dos bares. “Já que não tem mar, vamos para o bar. Por isso, nossa gastronomia é tão evoluída. Em outros lugares, você pode fazer algo ‘qualquer coisa’, porque o camarada tem o mar ali na frente dele. Aqui, não. Nós temos que prendê-lo pelo estômago”, brinca o superintendente do Mercado Novo, Gabriel Filho.

O título belo-horizontino é comprovado por números: a cidade tem 178 bares para cada 100 mil habitantes, a maior concentração de estabelecimentos do tipo no Brasil, segundo um levantamento da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Há os tradicionais, como o Café Palhares (fundado em 1938), o bar do Nonô (1964), a Cantina do Lucas (1962) e o Bar do Zezé (1979). E há as novidades que não param de surgir, como a redescoberta gastronômica das galerias São Vicente e do edifício Central, que seguem os passos da reocupação do Mercado Novo, um ponto que, em poucos anos, se tornou um atrativo turístico da região central. 

O Mercado Novo tornou-se um protagonista da identidade de cidade criativa que BH tem consolidado. Ao mesmo tempo, ele também é resultado de outro traço de personalidade belo-horizontino: o gosto em fazer acontecer por conta própria, concorda o superintendente Gabriel Filho. “É o povo que se reinventa, como foi na rua Sapucaí. O povo escolheu um lugar para ir, e assim várias regiões se firmaram”, pontua. O Mercado Novo e a rua Sapucaí são exemplos de um movimento que se repete na cidade. Pequenos empreendedores enxergam o potencial de uma região que já foi tradicional e que depois foi abandonada, e então o público a consagra como um novo polo cultural e econômico.

Mercado Novo
Mercado Novo completa 61 anos em 2024. (Credito: Rodney Costa/O TEMPO)

Filho conta que o sucesso do negócio atrai atenção de empreendedores de vários países e cidades, que o procuram para tentar replicar o modelo do Mercado Novo em mais locais. Mas não é possível, diz ele: “já me ligaram da Espanha, Juiz de Fora, Rio de Janeiro... Mas aqui é uma ocupação regional, é a economia criativa de BH”.

O mercado representa uma dualidade própria de BH, que mistura “antigo e sonho, tradicional e ‘para frente’ da mesma forma”, nas palavras da diretora de Marketing e Promoção Turística da Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte (Belotur), Marina Simião. “BH é uma cidade jovem, mas que nasceu com raízes muito fortes. São pessoas do território e do entorno que vieram construir a nova cidade. Isso faz com que tenhamos essa raiz muito forte de ser mineiro. Ao mesmo tempo, por ser uma das primeiras cidades planejadas do Brasil, temos esse olhar de ser algo novo, um espaço de sonhos. Temos essa imagem de ser um pouco do interior e um pouco contemporâneos, de acolhermos bem à mesa e conversar sobre o futuro, sobre economia criativa. São dualidades que não se contrapõem e, sim, se complementam”.

Mercado Central está no cruzamento das tradições de BH

Hoje aos 95 anos, faz pouco mais de uma década que o Mercado Central se reposicionou no imaginário da cidade como um atrativo turístico, reflete o superintendente Luiz Carlos Braga. “Isso ficou mais evidente de 2012 para cá. Tivemos a Copa do Mundo, em 2014, com vários jogos em BH, e em 2016 ganhamos o prêmio de terceiro maior mercado do mundo”. Ele faz referência a uma publicação da revista de bordo Tam nas Nuvens, que listou mercados ao redor do mundo. 

Ele afirma que, por ano, circulam 15 milhões de pessoas pelo mercado, uma multidão diversa de locais e turistas. “É um local em que as pessoas se encontram. Não é excludente. Quem frequenta o Pátio Savassi não vai em shopping da zona Norte. Mas, no mercado, temos de A a Z, é um espaço que agrega todas as classes sociais e culturais, até pelo tempo de maturação dele”, diz Braga.

Mercado Central
Mercado Central se consolidou como um dos principais pontos turísticos de BH. (Crédito: Flávio Tavares/O TEMPO)

A experiência acumulada em quase um século de mercado o transforma em um case nacional. “Conheço 59 mercados, ora visitando, ora falando da experiência do Mercado Central. Estamos fazendo um trabalho grande em Maceió, por exemplo, ajudando a prefeitura a capacitar comerciantes e a estruturar o mercado público da cidade”, detalha Braga.  

BH tem símbolos antigos, novos e em construção

Com a proposta de reforçar a identidade da cidade para os consumidores locais e apresentá-la aos turistas, os produtos da loja Made in Beagá  — canecas, sabonetes, panos de prato, ímãs — estampam diferentes pontos e características da cidade. Ao conceber os produtos, o empresário Felipe Martins e seu sócio, Guilherme Pertence, precisaram decidir: quais símbolos representam BH?

“Obviamente, cada público tem uma visão da cidade. Se eu fosse falar em um símbolo principal, diria que a igrejinha da Pampulha é muito icônica para a capital. A pessoa pode nunca ter pisado em BH, mas sabe que aquela igrejinha é um símbolo importante de uma cidade. Ficamos pensando se fugiríamos das referências óbvias, como a igrejinha. Mas ela não é tão icônica e importante à toa”, conta Felipe.

A solução foi unir velhos símbolos da capital a pontos de menos consenso, mas reconhecíveis (e importantíssimos) para parte da população. “Para cada cem xícaras da Pampulha que vendemos, são dez da praça Raul Soares e dez da praça do Papa, por exemplo”, continua o empresário. A nova criação da marca são utensílios de cozinha, como avental, pano de prato e jogo americano, com pratos tradicionais da cidade, a exemplo do Kaol do Café Palhares, o filé Surprise da Casa dos Contos e o rolinho primavera do Macau.

Made in Beagá
Nova coleção da Made in Beagá destaca pratos clássicos da cidade. (Crédito: Fred Magno/O TEMPO)

“Os símbolos são uma construção eterna. Quem não se reinventa diariamente está fadado a morrer no esquecimento. O que era o Mercado Novo enquanto símbolo há seis, sete anos? Esses símbolos precisam ser reforçados pelas iniciativas pública e privada”, continua ele.

A reinvenção mencionada por Felipe tem se tornado o hábito diário da cultura belo-horizontina, exemplificado na potência máxima pelo Carnaval. Sempre um data presente no calendário cultural da cidade, em uma década ele ascendeu a um dos cinco maiores do país, com atração de 5,5 milhões de foliões em 2024. Hoje, Belo Horizonte é com certeza uma cidade carnavalesca, sublinha a diretora de Marketing e Promoção Turística da Belotur, Marina Simião. “Temos um Carnaval muito próprio, que é uma grande vitrine para nós por ser basicamente todo na rua, diurno, gratuito, com diversidade de músicas e propostas”.

Em mais uma mostra de cultura e economia caminhando juntas, o Carnaval impulsiona um mercado que tem representado BH no restante do país: o das latinhas de drinks prontos. O diretor executivo do Grupo Xeque Mate Bebidas, Alex Freire, acha exagerado dizer que a Xeque Mate tenha se tornado um símbolo da cidade, mas pondera que ela certamente se tornou uma paixão.

Com uma produção de 23 milhões de latas por ano, hoje a Xeque Mate está em 14 Estados do Brasil, além de Minas. “A galera tem orgulho de mostrar para os outros, xinga quando o pessoal fala mal no Twitter ou divulgam Xeque Mate falsificada. A galera tem prazer em chegar na sexta-feira e postar que está tomando”, diz Freire. 

Xeque Mate
Xeque Mate foi fundada em 2015. (Crédito: @lettsousa/Xeque Mate/Divulgação)

 

Com todos esses movimentos de constante mudança na cidade, a diretora de Marketing e Promoção Turística da Belotur, Marina Simião, estimula que os próprios belo-horizontinos vejam a cidade com o olhar de quem a descobre, se surpreende e conta para todo mundo. “A gente é muito tímido, mineiro trabalha calado, mas, às vezes, temos que fazer um barulhinho maior”.