Quem segue pela avenida Antônio Carlos até chegar ao viaduto Sarah Kubitschek rumo à rodoviária de Belo Horizonte vê no cenário, ao lado do campanário do Santuário Arquidiocesano Nossa Senhora da Conceição dos Pobres, uma torre quadrada e preta, com uma inscrição amarela em letras de forma: “GELO R$ 13”. Também visível nos bairros Bonfim e Lagoinha adentro, ela é um dos símbolos de consumo que contam parte da história econômica da capital nas últimas décadas.
Como um termômetro visual da inflação, a torre começou anunciando o saco de 20 kg de gelo por R$ 2, no início dos anos 2000, e aumentou o preço gradualmente desde então. Em 2025, pela primeira vez, o valor baixou e foi de R$ 15 para R$ 13 – sinal de desaquecimento do setor de eventos, segundo o proprietário da fabricante Gelinho, onde está o mural, Afonso Teixeira. “Acho que a placa constrói a identidade da Lagoinha. É difícil ela não vir à memória de uma pessoa. As pessoas dão atenção”, orgulha-se, na entrada da loja, onde também há um anúncio envelhecido do extinto guaraná Del Rey por R$ 3,50. O empresário é, ainda, dono da Teixeira do Peixe, peixaria que distribui milhares de peixes gratuitamente na Sexta-Feira da Paixão.
A propaganda do gelo não é o único lembrete do passado da economia belo-horizontina nesta ou em outas regiões. São décadas de acumulação de murais, placas e até inscrições nas calçadas. Com o tempo, tudo isso se torna mais que publicidade. É parte da identidade do comércio de Belo Horizonte e da própria cidade.
Algumas propagandas se vão. Uma foto de 1950 do viaduto Santa Tereza, por exemplo, parte do acervo do Museu Histórico Abílio Barreto, no bairro Cidade Jardim, mostra inscrições de “Tome Urudonal” (remédio que prometia reduzir males da velhice e está fora de circulação) e “Use Cilion” (colírio há décadas em comercialização), nos arcos da passagem. Com o tempo, desapareceram.
Outras tantas propagandas ficam. É o que percebe o pedestre mais atento, que, em incontáveis esquinas, depara-se com plaquinhas azuis com o nome da rua e, abaixo, o de marcas que, em muitos casos, já nem existem mais. Há propaganda, por exemplo, de pastas para arquivo Katina (acompanhada por um telefone de seis dígitos), da camisaria Cadillac (que foi um clássico da avenida Afonso Pena) e da Casa Falci (loja de materiais de construção com mais de um século de história e ainda em funcionamento). Desde 2009, uma lei proíbe novas placas com publicidade.
‘A cidade tem pele’
“Esses tipos de sinais e inscrições nas ruas de Belo Horizonte são vestígios de uma época que não está mais presente, mas que está sob camadas do que vemos agora. Isso é uma parte da nossa história visual. Quem é mais novo e não teve contato com essas empresas e marcas acaba não tendo noção do que é e acha estranho, diferente. Mas aquilo teve um lastro na realidade. Hoje fica uma coisa histórica, do passado, para entender a cidade. São vestígios do que era antes”, elabora o escritor e pesquisador da história de BH João Perdigão.
Além disso, em uma cidade onde quase 70% do Produto Interno Bruto (PIB) é movimentado pelos setores de comércio e serviços, essas evidências são pequenos sinais que reforçam a relação histórica da cidade com essas atividades, na visão do vice-presidente de Relações Institucionais da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), Marcos Corrêa. “Antes, como Curral Del Rey, e depois, Belo Horizonte, a cidade era como um entreposto comercial das caravanas vindas para abastecer regiões minerárias, como Ouro Preto. Havia um comércio muito vibrante desde sempre. Ele sempre foi importante para a cidade, desde os primórdios dela”, pontua.
Com os anos, a publicidade de outros tempos pode se tornar algo além da mera divulgação de marcas e empresas, propõe o autor do livro “Pele de Propaganda”, Luiz Navarro, que explora a cultura de lambe-lambes e outras manifestações artísticas. “A cidade tem sua pele, sua superfície. Propagandas antigas têm novos sentidos. Todas essas imagens e símbolos fazem parte do imaginário coletivo e são indícios de uma história que passou. A partir de quando uma propaganda é memória? A partir de quando é patrimônio? É como o relógio do Itaú que ficava em cima do edifício JK. Dizemos que é simplesmente propaganda ou virou parte do patrimônio afetivo da cidade? Isso é muito sutil e relativo”, conclui.
Nos bastidores da publicidade, profissionais rememoram criações na capital
Aos 71 anos, Domingos Zeferino diz que está na hora de se aposentar da carreira de adesivador, cartazista e desenhista, que iniciou aos 18. É dele o contorno do preço do gelo na fábrica Gelinho, no bairro Bonfim, região Leste da capital mineira. “Sempre trabalhei em BH. As letras dos ônibus eram todas pintadas. Hoje são plotadas. É muito mais fácil”, rememora. “A ideia do mural do gelo era ser chamativo mesmo. Quando eu vejo minha arte aparecendo na TV, fico satisfeito”, complementa.
Também é satisfação que o gerente da Divinal Vidros, Abdo Moreira de Andrade, cita ao descrever as placas com o nome da empresa instaladas pela cidade entre as décadas de 1970 e 1980 e ainda hoje remanescentes em muros de diferentes bairros. “A comunicação visual era difícil nessa época. As pessoas saíam para um bairro e não sabiam o nome da rua. As ruas precisavam de uma identificação, e a Divinal viu uma oportunidade de divulgar seu nome”, conta.
Ele era responsável por acompanhar a instalação das placas naquele período – foram cerca de 300, segundo Abdo. “Todo lugar onde instalamos agradecia. Nessa época, também tínhamos veículos na rua com rádio comunicador anunciando. Era o marketing da época. As placas fazem parte da história de BH”, diz.
Painéis de LED da praça Sete são nova fronteira
Belo Horizonte tem uma série de restrições à publicidade, como o número de outdoors por quarteirão. Em toda a cidade, há 436 engenhos publicitários instalados, o que contabiliza outdoors, painéis nas empenas de edificações e publicidade em bancas. Agora, está prestes a surgir um novo tipo de propaganda na capital.
A partir deste mês, os edifícios da praça Sete podem solicitar o licenciamento para instalação de painéis de LED na região, parte do projeto que ficou conhecido como “Times Square da praça Sete”, em referência ao ponto turístico em Nova York. Por ora, nenhum chegou a ser instalado, e mesmo já aprovada pela prefeitura, a nova lei continua a causar polêmica.
Há defensores, que dizem que esse tipo de propaganda valorizará o espaço urbano, e detratores, que argumentam que esse tipo de publicidade é ostensivo e descaracterizará o centro.
“A cidade de Belo Horizonte clama por revitalização, principalmente a área central. Os painéis de LED, devidamente regulamentados e respeitando a arquitetura presente na área central, são outro ponto de revitalização, de atração de turismo e de identidade da cidade”, defende o vice-presidente de Relações Institucionais da CDL/BH, Marcos Corrêa.
Já autor do livro “Pele de Propaganda”, que explora a cultura de lambe-lambes e outras manifestações artísticas nas ruas de BH, Luiz Navarro, pondera que os painéis de LED não pertencem ao mesmo universo da propagandas antigas de BH, como as marcas nas placas de rua ou o mural do preço do gelo no Bonfim. “São uma tecnologia nova e agressiva. A praça Sete tem várias características que fazem parte da cidade. Aquela paisagem está estabelecida no imaginário da cidade. É difícil dizer que haverá um sentido afetivo em um propaganda de LED de supermercados, bets... Ela virá crua. Uma propaganda crua e forte”, conjectura.
A professora de Arquitetura e Design da UFMG Renata Marquez também questiona. “A noção de espaço público é algo precioso e frequentemente destroçado pela privatização, transformando a cidade exclusivamente numa máquina de dinheiro. Temos que estar atentos para o que propostas como essa realmente pretendem”, provoca a pesquisadora.
Leia a próxima parte desta matéria. Calçadas portuguesas de BH guardam décadas de história, trabalho e curiosidades: conheça os detalhes