A investigação comercial que Donald Trump determinou contra o Brasil tem potencial de gerar danos adicionais à economia brasileira. A iniciativa traz riscos de novas sanções, consideradas de difícil reversão. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a apuração pode ainda ser usada como base legal pela gestão Trump para futuras medidas contra o Brasil. Na mesma carta em que anunciou um tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros e se queixou de perseguição política contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Trump instruiu o USTR (o escritório de comércio do governo americano) a abrir um procedimento contra o Brasil com base na chamada seção 301.
"Devido aos contínuos ataques do Brasil às atividades de Comércio Digital de empresas americanas, bem como a outras práticas comerciais desleais, estou instruindo o representante comercial dos EUA, Jamieson Greer, a iniciar imediatamente uma investigação com base na Seção 301 contra o Brasil", escreveu Trump.
Vinculada a uma legislação americana de 1974, a seção 301 autoriza o governo dos EUA a retaliar, com medidas tarifárias e não tarifárias, qualquer nação estrangeira que tome práticas vistas como injustificadas e que penalizam o comércio americano.
As normas dos EUA exigem que o país alvo da investigação seja ouvido e apresente argumentos. O processo costuma durar 12 meses a partir do início da apuração. Atualmente, o principal alvo dessa retaliação é a China. Em 2018, ainda em seu primeiro mandato, Trump aplicou tarifas punitivas contra o país asiático por ações consideradas desleais nas áreas de transferência de tecnologia, propriedade intelectual e inovação.
As tarifas atingiram um total de US$ 370 bilhões em produtos chineses. Sete anos depois, continuam em vigor e foram ampliadas para o setor naval. Barbara Medrado, advogada de direito do comércio internacional na King & Spalding, avalia que os riscos de uma investigação com base na seção 301 são tão grandes ou até piores do que o anúncio das tarifas de 50%.
Na opinião da especialista, enquanto a sobretaxa de 50% tem maior margem para ser questionada na Justiça americana, uma vez que Trump não escondeu a motivação política por trás dela, eventuais punições com base na seção 301 são mais complexas e de difícil reversão. "Tarifas com base na 301 já foram contestadas na Justiça dos EUA. A legalidade dessas medidas foi confirmada e as tarifas continuam em vigor por anos", diz.
Barbara levanta ainda outro ponto: há anos o Brasil é incluído em relatório do USTR que analisa práticas de parceiros comerciais dos americanos, e sempre há queixas sobre temas como propriedade intelectual e falsificação de produtos. Dessa forma, já há reclamações na administração americana que podem fundamentar a futura investigação.
O último relatório do USTR sobre propriedade intelectual, por exemplo, afirma que os EUA têm "preocupações de longa data com a ampla importação, distribuição, venda e uso de produtos falsificados, consoles de videogame modificados, dispositivos de streaming ilícitos e outros dispositivos de violação de direitos no Brasil, apesar de algumas ações significativas de enforcement [aplicação da lei] em propriedade intelectual realizadas pelas autoridades em 2024".
O professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) Direito Rabih Nasser, por sua vez, opina que o governo Trump pode enquadrar os julgamentos no Brasil e tentativas de regulamentação das grandes empresas digitais - as chamadas big techs - como práticas comerciais discriminatórias contra empresas dos EUA. "A seção 301 é uma forma de buscar legitimar a aplicação de medidas que são incompatíveis à luz de acordos internacionais", diz Nasser.
Já Vera Kanas, sócia do escritório especializado em comércio internacional VK Law, também expressa preocupação com a investigação e destaca que as sobretaxas da seção 301 são cumulativas.
"O risco é maior dado que o pedido para o início dessa investigação veio do próprio governo, ou seja, haverá uma pressão política. Além do mais, não há muita transparência sobre as práticas comerciais do Brasil que seriam avaliadas", diz.