Negócios & urbanismo

Como a rua Sapucaí "começou" há 10 anos e o que deve mudar

Região passou a tomar a forma atual com a inauguração da Benfeitoria; donos de negócios na região relembram trajetória de via que se tornou um corredor cultural e gastronômico de BH

Por Gabriel Rodrigues
Publicado em 21 de janeiro de 2024 | 06:00
 
 
 
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De um lado, o horizonte que dá nome à capital mineira, visto sobre uma balaustrada de pedra e acima da linha do metrô. Do outro, uma fileira de muros com camadas coloridas de pichação e lambe-lambes. Nas calçadas, uma multidão de pessoas escoradas nos balaústres segurando uma bebida ou sentadas nos bares conversando com os amigos. Na divisa do bairro Floresta com o Centro, esta é a rua Sapucaí, onde há dez anos grande parte dos belo-horizontinos acharia inconcebível circular à noite. Hoje, ela é um corredor cultural e gastronômico da cidade, prestes a receber um investimento público de R$ 5 milhões para ampliar ainda mais suas possibilidades econômicas.

Após uma consulta pública em 2022, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) prepara o edital de licitação para iniciar as obras na rua, que terá reforma dos balaústres e ganhará bancos, banheiros públicos, balanços e uma área gramada, conforme mostra o projeto, que também prevê encerrar a circulação de carros em parte da via. A intenção, de acordo com a PBH, é começar o trabalho em maio e finalizá-lo em um ano. O recurso é parte de um fundo municipal destinado ao programa Centralidades, que tenta desenvolver polos econômicos nas diferentes regionais da capital.

O caminho da Sapucaí até este ponto é longo. Nas cercanias de uma das primeiras e extintas favelas da capital, quando a cidade ainda estava em construção, ela passou décadas abandonada pelo público (e pelo poder público), até que, em 2014, tudo mudou. Ela já tinha alguns bares, como o boteco Sapucaí 499, no local há 21 anos, e a Salumeria Central, inaugurada em 2012 com uma proposta de alta gastronomia. Mas foi a Benfeitoria, inaugurada há dez anos, que abriu as portas da Sapucaí para a multidão que a frequenta até hoje.

A origem da Benfeitoria está em um grupo de amigos que trabalhavam juntos em uma casinha no Floresta com arte, design e outras atividades criativas e decidiu ampliar o espaço. “Saímos andando um dia para fazer o trabalho de arte de uma das sócias, procurando paredes para pregar uns lambes, vimos o lugar, gostamos e o dono rapidamente topou alugar”, conta uma das idealizadoras da Benfeitoria, Jordana Menezes. Relembre na foto abaixo:

Benfeitoria no começo de sua história

Benfeitoria, no começo de sua história

Assim que ela foi aberta, tornou-se uma sensação entre a juventude belo-horizontina — e um negócio rentável em um ponto até então malvisto por muitos empreendedores da cidade. “De repente, a rua estava lotada. A Benfeitoria pagava os próprios custos, nos pagava, e conseguíamos reinvestir”, pontua Menezes. 

Aos poucos, o projeto começou a ser ladeado por outros empreendimentos, como o Dorsé (com almoço e petiscos), a Casa Sapucaí (ponto de festas itinerantes) e o Mi Corazón (combo de bar e balada que não cobra entrada). Até que, em 2018, tão espontaneamente quanto começou, segundo Jordana, acabou. “Virou uma coisa muito maior do que esperávamos. Um belo dia, chegamos e falamos: estamos cansados. Vamos fechar?”, resume. Hoje, ela tem outros projetos criativos, além de um bar recém-inaugurado na praia de Corumbau, na Bahia. No endereço da Benfeitoria, hoje funciona uma unidade do bar Laicos, originalmente da Savassi, depois de outros empreendimentos terem passado pelo local.

Laicos, onde funcionava antiga Benfeitoria

Laicos, onde funcionava antiga Benfeitoria

Parte do legado da Benfs, assim chamada pelos íntimos, permaneceu na rua: um gosto pela ocupação do espaço público para além das mesas dos bares, manifestado nas fileiras de pessoas que se reúnem nas calçadas, às vezes com suas próprias caixas de som. É um local, concordam alguns dos empreendedores que atuam na região, que não obedece muito a ninguém.

No começo, “improviso, poesia de rua e magia”

“A Sapucaí era uma coisa meio proibida, no improviso e no riso. Tinha poesia de rua. Ela é a nossa praia. Machucada, mas extremamente romântica”, descreve Adair Groove, dono do Mi Corazón, um dos primeiros bares da rua do ponto de vista de quem chega a partir da avenida Assis Chateaubriand. O empreendimento, aberto em 2017, foi o seu primeiro — hoje somado a outros dois. É um dos pontos mais cheios da Sapucaí aos finais de semana, abarrotado de pessoas nas mesas de fora e dançando do lado de dentro sob a luz rosada. “No começo, o Mi Corazón era extremamente amador, faltava até abridor de garrafa. Tinha um quê de inocência”, diz.

Adair Groove, do Mi Corazón, na rua Sapucaí

Adair Groove, do Mi Corazón, na rua Sapucaí

A proposta de abrir o espaço para a rua e deixar quem quisesse entrar sem cobrar entrada era a cara da Sapucaí daquela época, na visão de Groove. Deu certo: “começou a se pagar desde o primeiro dia, e fidelizamos um público massa”, conta. Do outro lado da moeda, está a Salumeria Central, primeiro bar da nova leva de empreendimentos da rua, aberto antes mesmo da Benfeitoria, mas com uma proposta totalmente diferente, de um restaurante de alta gastronomia mineira e italiana.

A decisão de abrir o restaurante na Sapucaí era inspirada pela vontade de ter uma identidade única, longe dos bairros que concentram a alta gastronomia de BH, como o Lourdes. No início, ela se provou correta, até que o público da rua mudou, ela encheu-se de ambulantes e de pessoas escoradas nos carros estacionados em frente aos balaústres. “O faturamento caiu bastante. Era alta gastronomia, uma rua muito elitizada, e então as pessoas deixaram de vir, ficaram com medo. Tive que dar uma adaptada à realidade atual”, diz a proprietária da Salumeria Central, Rosi Dias. Além do carro-chefe da casa, os pratos com embutidos, ela passou a oferecer petiscos para tentar atrair o novo público da Sapucaí.

Rosi Dias, proprietária da Salumeria Central

Rosi Dias, proprietária da Salumeria Central

A algumas portas subindo a rua, estão o Botequim Sapucaí, no térreo, e a pizzaria Panorama, no segundo piso, ambas comandadas por Alfredo Lanna e seus sócios, também por trás da casa de shows A Autêntica e do recém-inaugurado Babel, na praça Raul Soares. Arquiteto e professor, Lanna posiciona a Sapucaí como resultado de um movimento belo-horizontino com paralelos no Carnaval de rua e em points mais recentes da cidade, como os bares da Raul Soares. 

“Tínhamos o Samba da Meia-Noite, na rua Aarão Reis [embaixo do viaduto Santa Tereza], com mais ou menos o mesmo público, que queria estar na rua, onde estivesse tocando música. A Benfeitoria trouxe muito esse movimento. É um movimento passageiro, porque esse público busca novos lugares. Quem está de um lado da Sapucaí hoje vai para o outro lado, depois para dentro do Mercado Novo, para a Raul Soares, volta para a rua Alberto Cintra ou para o Lagoinha, qualquer lugar onde a moçada e a efervescência da novidade estejam”, diz.

Outro ponto comum em dois dos endereços citados por Lanna é o Circuito Urbano de Arte (Cura), projeto que leva pinturas gigantescas às empenas de edifícios de BH. A primeira edição fez da Sapucaí um mirante do processo de pintura em 2017, além de uma espécie de praia de concreto para os belo-horizontinos. “A Sapucaí é uma rua árida, onde bate sol. Tivemos a ideia de fechar onde os carros param e colocar as famosas cadeirinhas de praia, emprestadas da prefeitura, que tinha um estoque delas. O primeiro Cura foi aquela paixão, foi arrebatador”, relembra uma das idealizadoras do festival, Juliana Flores.

Vista da pizzaria Panorama para um painel do Cura

Vista da pizzaria Panorama para um painel do Cura

O Cura também desembarcou na Raul Soares em 2022, época em que a praça começou a ter um movimento de ocupação em alguma medida similar ao da Sapucaí anos antes, com novos bares tomando antigos prédios. No segundo semestre de 2024, deve retornar à praça, apelidada pelas criadoras como “Raulzona”.

Outros eventos também movimentaram a Sapucaí ao longo destes dez anos, além dos bares. A CasaCor esteve ali por dois anos, em 2017 e 2018, ocupando o prédio histórico da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA). A rua também serviu de palco para algumas das intervenções do Festival da Luz, que povoou os arcos do Viaduto Santa Tereza com dragões coloridos e levou letreiros luminosos para a beira do metrô.

Dez anos depois de seu boom, a Sapucaí perdeu o movimento de ambulantes e não é mais o ponto favorito de parte do público, que de fato migrou para outros pontos que surgiram desde então. Mas continua lotada nas noites de final de semana, com filas que, por vezes, viram o quarteirão da Casa Sapucaí e mesas esgotadas no Trip Food, restaurante com luzes de néon que pode ser avistado de longe.

Para alguns empreendedores da região, Sapucaí tem um quê de

Para alguns empreendedores da região, Sapucaí tem um quê de "praia" de BH

Uma nova fase da rua Sapucaí

Planos de requalificar a rua Sapucaí são antigos. Um relatório de 1981 escrito pela então Secretaria de Estado de Planejamento fala sobre a importância do conjunto Praça da Estação, que inclui o endereço, e diz: “apesar de ter pouco movimento e possibilitar uma ampla visão da cidade, a rua Sapucaí não desperta nenhum interesse para os pedestres, talvez por não apresentar tratamento paisagístico e equipamentos necessários para atrair a população e criar locais de encontro para o lazer quotidiano”.

O plano do governo municipal é reverter esse cenário de vez com a requalificação da rua, prevista para ser iniciada neste semestre. Ela será fechada para a passagem apenas de pedestres, e espera-se aumentar o número de árvores no local, além de instalar bancos, banheiros públicos e uma área gramada. O projeto foi desenvolvido com base em uma consulta pública aberta pela prefeitura no final de 2022.

“O que tivemos de retorno da população é que se pretende para a rua, além do uso gastronômico e noturno, a existência de uma área de lazer para famílias. Existe um conflito grande com o trânsito. É uma via rápida, e já tivemos acidente ali. Obviamente, isso melhorará o espaço para o desenvolvimento de bares e restaurantes”, detalha o subsecretário municipal de Planejamento Urbano, Pedro Maciel.

Ilustração da reforma da rua Sapucaí

Ilustração da reforma da rua Sapucaí

Diretor da imobiliária MLopes, Júlio César Lopes tem escritórios para alugar na região, parte deles vagos desde a pandemia, e aposta as fichas na reforma para movimentar o mercado imobiliário na área. “Bares próximos são um atrativo, até para o happy hour, mas para residencial atrapalha. As obras na rua podem ajudar, toda ação assim causa incremento no mercado, torna-se uma área mais nobre”, resume.

Alguns bares com que a reportagem conversou comemoram a requalificação, embora tenham receio sobre a duração das obras. Para Jordana Menezes, uma das criadoras da Benfeitoria, que assistiu ao renascimento da Sapucaí, é uma ajuda bem-vinda, mas que poderia ter chegado antes.

Ela avalia que é comum que, primeiro, chegam os empreendedores e o público, e só muito depois o poder público e as empresas, sendo que poderia haver incentivo desde o início. “É um movimento infelizmente comum em BH. Sinto falta de ter apoio no começo. As marcas e o poder público esperam o negócio estar pronto para apoiar, mas às vezes precisamos de apoio lá atrás, quando existe a vontade de fazer. Batemos muito a cabeça sozinhos, aí vira uma coisa maravilhosa e todo mundo quer botar a mão e associar sua marca”, conclui.

Frequentadores da rua Sapucaí enfileiram-se na balaustrada

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