Vigente há 44 anos, um tratado entre Brasil e Alemanha para troca de tecnologia para o desenvolvimento de energia nuclear está na mira de parlamentares germânicos. Nas próximas semanas, a bancada do Partido Verde no Parlamento alemão enviará um requerimento, obtido por O TEMPO, para consulta junto ao governo do país com 31 perguntas relativas ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, assinado por ambos os governos em 1975, durante a ditadura militar. Questionados, Ministério de Minas e Energia (MME), Itamaraty e Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) não se posicionaram.

Além da consulta, há também um requerimento que deve ser colocado em votação no Parlamento alemão no próximo dia 13. De autoria da deputada federal Sylvia Kotting-Uhl (Partido Verde), o texto, intitulado “Rescisão do acordo atômico bilateral com o Brasil”, pede “a revogação do tratado até 17 de novembro e o cancelamento da sua renovação automática em mais cinco anos” e também um fortalecimento da parceria mútua na redução de emissões e no desenvolvimento de fontes renováveis.

Não é a primeira vez que a bancada ambientalista tenta derrubar a cooperação em energia atômica. Em 2015, outra consulta foi feita, mas o governo da Alemanha rejeitou a revogação, sob a justificativa de que, com o acordo, o país pode monitorar a segurança dos reatores brasileiros.

Em dezembro, após a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência, o Partido Verde enviou um questionamento prévio sobre o assunto. Em resposta, o governo alemão declarou, à época, que iria “medir os atos do novo governo brasileiro a partir do começo da administração, em 1º de janeiro de 2019”.

Após a posse, porém, a relação sofreu ruídos. Em agosto, o governo da Alemanha decidiu congelar o repasse de cerca de R$ 155 milhões destinados ao Fundo Amazônia, alegando baixos esforços do Brasil para conter as queimadas na floresta.

Segundo a deputada Sylvia Kotting-Uhl, a rescisão pode ser unilateral, e a medida estaria dentro da linha de raciocínio utilizada para o congelamento dos recursos no Fundo Amazônia. “Pode-se questionar se essa medida surtiu efeito positivo ou não, mas, de qualquer forma, seria coerente na política do governo alemão agir da mesma forma no caso da energia atômica”, diz ela (leia a entrevista completa abaixo).

Sylvia diz que há sinalizações pela revogação do acordo por parte de membros de outros partidos, como o SPD, que forma o governo com o CDU/CSU de Angela Merkel.

Enquanto a Alemanha fixou o ano de 2022 como prazo máximo para iniciar o desmonte de suas usinas atômicas, o Brasil já anunciou um projeto de investimento para finalizar a de Angra 3 e o plano de construir, até 2050, mais seis usinas nucleares no país.

De acordo com Rafael Brandão, professor do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em História Social da UERJ e autor de uma dissertação de mestrado sobre o assunto, o acordo previa a construção de oito usinas nucleares, a partir de Angra 2, e se diferenciava de Angra 1, erguida numa parceria com Estados Unidos sem a transferência de tecnologia.

"Foi muito ambicioso. Mas, nos anos 80, nem o acordo, nem as obras foram adiante. Só a usina de Angra 2 ficou pronta", explica.

Cooperação bilateral virou ‘negócio do século’

Segundo o historiador Rafael Brandão, o acordo nuclear acabou conhecido como “negócio do século” pela imprensa alemã. O título veio após a descoberta, no fim dos anos 70, dos termos secretos que beneficiavam empresas alemãs.

Nos anos 80, o programa acabou dando lugar a um projeto nuclear nacional, que ficou a cargo da Marinha. Segundo ele, para os militares, o projeto nuclear traz a ideia de soberania nacional, pois possibilita a construção de armas. “Esse aspecto militar, geopolítico, envolve justamente os interesses sobre a possível construção de uma bomba atômica”, explica, acrescentando que a retomada da energia nuclear no governo Bolsonaro está diretamente ligada à presença da ala militar.

ENTREVISTA

Leia a seguir a conversa com Sylvia Kotting-Uhl, deputada federal alemã pelo Partido Verde:

O TEMPO - Quais são as maiores preocupações da senhora e do Partido Verde em relação ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, agora que o governo Bolsonaro anunciou retomar o programa nuclear?

Sylvia Kotting-Uhl - Primeiro, há uma militarização na gestão Bolsonaro, inclusive dentro do governo, e, ao mesmo tempo, o Brasil tem se negado, há um bom tempo, a assinar o Protocolo Adicional ao Acordo de Salvaguardas com a Agência Internacional de Energia Atômica. O segundo ponto é que o senhor Bolsonaro se comporta de maneira destrutiva em questões gerais sobre meio ambiente e direitos humanos. Por causa desses dois aspectos, está mais urgente que antes revogá-lo. Mas antes, por exemplo, já havia o fato de que a produção de urânio brasileira não estava atendendo os padrões ecológicos. Além disso, Angra 3 utiliza uma tecnologia alemã ultrapassada e possui instalações a céu aberto, o que tampouco atende os padrões de segurança alemães. Todos esses fatos são intoleráveis para a Alemanha.

O TEMPO - Em 2014, houve uma tentativa frustrada do Partido Verde de revogar o acordo. Como está a aceitação dessa medida agora na Alemanha?

Sylvia Kotting-Uhl - Acho que os argumentos para revogar o acordo são ainda mais urgentes agora. Por exemplo, em relação às queimadas na Amazônia, o governo alemão tomou decisões no auxílio financeiro para os projetos de proteção a florestas e biodiversidade. Pode-se questionar se surtiu efeito positivo ou não, mas, de qualquer forma, seria coerente na política do governo alemão agir da mesma forma no caso da energia atômica. 

O TEMPO - Da última vez, o governo alemão rejeitou a revogação dizendo que o acordo contribuía para influenciar a segurança das instalações nucleares no Brasil. Esse fato se confirmou?

Sylvia Kotting-Uhl - Não aconteceu. O governo alemão não conseguiu nem informações sobre o estado de segurança de Angra 3, por exemplo, muito menos exercer a tal influência.