SÃO PAULO. Uma das cenas mais divertidas de “Marcello Mio”, longa-metragem feito em homenagem ao centenário do ator italiano Marcelo Mastroianni, é quando os vários personagens vividos pelo astro se reúnem num programa televisivo, a partir de alguns sósias. Estão lá desde o Mario de “Noites Brancas” (1957), de Luchino Visconti, ao Romano de “Olhos Negros” (1987), de Nikita Mikhalkov. Mas um em especial ganha relevo: é o Pippo de “Ginger e Fred” (1985), na pele de Chiara Mastroianni.

Fruto da relação entre Mastroianni e Catherine Deneuve, Chiara é a protagonista do filme de Christophe Honoré, um dos destaques da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece na capital paulista até o dia 31. No lugar de fazer uma biografia tradicional, o realizador francês optou por mostrar o ídolo a partir dos olhos da filha, com o peso de ser uma artista sempre comparada aos pais famosos. Ela entra em crise de identidade, passando a encarnar a persona de Marcello.

Chiara se veste, a princípio, como o cineasta Guido de “Oito e Meio”, de Federico Fellini, e é incrível a semelhança, não só física, mas também como ela consegue refazer todos os trejeitos do pai, como se realmente estivéssemos vendo aquele personagem tomar vida novamente. Honoré traz esse universo marcelloniano para o presente, especialmente quando reúne outros artistas que habitaram a vida de pai e filha, como a própria Catherine, o ator Melvil Poupad e a diretora Nicole Garcia.

Cada um, à sua maneira, vai redescobrindo momentos da relação com Mastroianni, não só pelas lembranças evocadas por uma Chiara obcecada pela figura do pai (ela se recorda, por exemplo, do gosto pela patinação artística, incentivado pelo pai), como também pelos cenários em que trafegam. Os mais simbólicos são o programa de TV, mostrado com a mesma carga satírica incutida por Fellini em “Ginger e Fred”, o encontro com uma adolescente na praia ou a Fontana di Trevi de “La Doce Vita”.

Mas “Marcello Mio” está bem longe desse se contentar com esse caráter meramente memorialístico. A questão se amplia, aproximando-se do espectador quando trata da crise de meia idade, ao fazermos uma revisão de tudo que fizemos até então. Honoré também trabalha, de forma inteligente, os “duplos”, a partir da própria divisão entre Marcello e Chiara, e que se estende para a sexualidade e para a territorialidade.  A atriz ora fala francês, ora italiano, ora inglês.

Nesta indefinição, o realizador, que é amigo pessoal de Chiara, põe em discussão o próprio fazer artístico e, especialmente, os limites entre ator e personagem. Não só em função dos marcantes papéis de Marcello, mas como o filme faz questão de aproximar esses dois universos, estabelecendo, muitas vezes, um clima meio onírico, representado, principalmente, por Luchini, que foi amigo do astro quando ele estava vivo, mas que se empenha em se tornar presente na vida do Marcello imaginário.

O longa começa com Chiara usando uma peruca loira, emulando Anika Ekberg em “La Doce Vita” para um comercial, dentro da Fontana di Trevi, e se encerra com a filha de Mastroianni, enfim, se desprendendo do personagem paterno numa praia de Roma (a mesma da cena final do filme de Fellini), tirando a roupa e mergulhando no mar, como uma forma de se reencontrar. A beleza do filme de Honoré está aí, ao se confrontar fantasmas (que não precisam os nossos genitores) e enxergar um novo caminho.

(*) O repórter viajou a convite da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo