Mônica Salmaso, 53, gaba-se da sorte. “De repente, caí naquela coisa de Cinderela”, diz, em referência ao atemporal conto de fadas cuja origem remonta à China do ano 860, e que ganhou uma clássica adaptação dos estúdios Disney na década de 1940. Ali, uma “gata borralheira”, como no título do conto italiano que teria inspirado o escritor francês Charles Perrault, que publicou sua versão em 1697, vive uma noite mágica ao ser contemplada pelo encanto das fadas, e deixa, como rastro de seu sonho, um sapatinho de cristal. Mas, no caso de Mônica, a abóbora conservou-se em carruagem. Ela se compara à princesa da história infantil ao relembrar a turnê com Chico Buarque.
Entre 2022 e 2023, Mônica, que aporta em BH nesta sexta (4) com o espetáculo “Minha Casa”, acompanhou o ídolo em “Que Tal Um Samba?”, dividindo com ele os vocais de canções como “Beatriz”, “Paratodos”, “Sinhá”, “João e Maria”, dentre outras. “Estar numa turnê com o Chico, em qualquer momento, seria gigantesco. É um dos meus maiores heróis”, exalta a cantora, que, na ocasião, emocionou-se junto ao público com a volta dos encontros presenciais após a pandemia de Covid-19 que vitimou cerca de 700 mil brasileiros. “Grande parte do público do Chico é formada por pessoas que entenderam o poder das vacinas, a importância de usar máscaras e se cuidar. Era uma celebração de vida, de encontrar pessoas com valores iguais”, afiança.
Transformar
Paralelamente havia, de acordo com Mônica, “um momento político de muita agonia e medo”, que culminou com a vitória do presidente Lula contra Bolsonaro. “Foi uma turnê carregada de emoção, em que me senti como extensão do público do Chico que sempre fui”, sublinha. O resultado dessa “experiência intensa” de dez meses de trabalho é, justamente, o novo espetáculo.
“É a casa para onde eu volto depois de tudo isso, e que já não é a mesma”, corrobora Mônica. A turnê, que passou por cidades como Recife, Brasília, Salvador, Belém, Fortaleza e Natal antes de chegar à capital mineira, é uma espécie de extensão do projeto “Ô de Casas”, que Mônica conduziu durante o período de isolamento imposto pelo coronavírus, com vídeos para a internet.
A série gerou encontros musicais com Zélia Duncan, João Bosco, Chico César, Joyce Moreno, Ney Matogrosso e o próprio Chico Buarque. “A pandemia impactou em tudo. O show ‘Minha Casa’ nasce dessas transformações, que, para mim, foram profundas, inclusive a nível pessoal, de decepção com o mundo, de entender quem vale a pena, e da nossa capacidade de ser parte de coisas boas e não fazer mal para os outros”, diz.
Em relação ao ofício, Mônica percebeu “uma estranha oportunidade”. “Ao ser obrigada a parar, pude avaliar meu tempo de estrada. Estava sempre muito envolvida em viabilizar o trabalho do momento, sempre olhando para o presente. Nunca tinha olhado para trás e, com esse tempo de paralisação, pude observar melhor o que já tinha feito”.
Repertório
Mônica conta que o repertório do show “se guiou por três assuntos”. “A louvação e a celebração do que é a arte e o ofício do canto; a identidade brasileira que se viu ameaçada nos últimos anos; e o cuidado com o planeta que é a nossa casa”. Segundo ela, esse último tema é “a urgência das urgências”. Já sobre os anteriores, ela cita “um laço de afeto grande entre todos os músicos que participaram do trabalho”, antes de discorrer sobre sua relação com a pátria.
“O Brasil, para mim, é mais do que um país, é uma causa. Somos um país que nunca se realizou completamente, mas que, na música, até pelo alcance, foi o lugar em que mostramos o que podemos ser, se nos realizarmos enquanto esse país feito de misturas reais. Se esse país tivesse oportunidades iguais para todos, seria tão rico como a música que produz”, conjectura.
Mônica define como “intuição concentrada” o seu labor na seleção das canções. Assistindo “ao processo de Chico”, ela aprendeu uma nova forma de elaborar seu show. “Ele trabalha com o roteiro pronto, já com a ordem das músicas, como numa peça de teatro, algo que eu nunca tinha feito”, revela.
O método a levou a compreender a “força de se pensar o arranjo não só em função da música, mas da localização dela no conjunto”, e exemplifica com “Mortal Loucura”, poema barroco de Gregório de Matos (1636-1696) musicado por José Miguel Wisnik para o espetáculo “onqotô”, do Grupo Corpo, e gravado por Mônica no álbum “Alma Lírica Brasileira”, de 2011. “Por estar alocada no bloco final do show, ela está mais quente, ganhou um tratamento de maracatu”, diz a cantora, que pensou nessas “temperaturas” ao lado de Teco Cardoso.
Futuro
Com 22 músicas, a maioria inédita na voz de Mônica, “Minha Casa” congrega “Noite Severina”, de Pedro Luís e Lula Queiroga, “Valsinha”, de Chico Buarque e Vinicius de Moraes, “Morro Velho”, de Milton Nascimento, “Menina, Amanhã de Manhã”, de Tom Zé e Perna, e outras em seu corpo sonoro. A artista planeja registrar o espetáculo e garante que, “desse repertório, sai certamente um disco”.
Ao mesmo tempo, ela pretende seguir na estrada com “trabalhos recentes que ainda têm fôlego”, como “Canto Sedutor”, de 2021, dividido com Dori Caymmi, e “Milton”, de 2022, em dueto com André Mehmari. Entre a tradição e a contemporaneidade, Mônica mira o seu futuro, com uma afeição especial por BH que ela jamais esconde, muito pelo contrário.
“Belo Horizonte é a única cidade que eu conheço que possui grupos artísticos que existem há mais de 30 anos em todos os segmentos. Na música tem o Uakti, na dança o Corpo, no teatro o Galpão e o Giramundo”, enumera ela, que atribui esse cenário a uma “criação pulsante”. “Muitas pessoas me perguntam se sou mineira. Digo que, de coração, sou sim”, diverte-se a paulistana, que considera que há “um novo Clube da Esquina nascendo” na cidade, graças a talentos como Rafael Martini, Alexandre Andrés, Davi Fonseca e “mais uns 30 músicos dessa geração que trazem uma linguagem nova e personalizada”.
Mônica, que alimenta seu “banco de curiosidades” com pesquisas nas plataformas digitais, seguiu o rumo da indústria de lançar singles para fisgar ouvintes visando os novos trabalhos, mas se ressente da época dos CDs. “Torço para que a gente não jogue fora todos aqueles discos que temos em casa e voltemos a ter essa relação física, ao invés dessa imaterial ‘nuvem’”, confessa a artista.
Serviço
O quê. Espetáculo “Minha Casa”, com Mônica Salmaso
Quando. Nesta sexta (4), às 21h
Onde. Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro)
Quanto. A partir de R$19,50 (meia-entrada) pela bilheteria do teatro ou no site do www.sympla.com.br