Logo que chegou na cidade, José Eduardo Gonçalves ficou impressionado. “Como as pessoas falavam mal daqui! Pessoas que eu convivia, colegas de faculdade”, relembra o jornalista e escritor. Natural de São João del-Rei, ele rumou para Belo Horizonte justamente para cursar jornalismo, e o estranhamento com o pouco caso dos próprios filhos da terra com a capital começou a acender em sua cabeça uma ideia. 

Corria o ano de 1976, e até colocá-la em prática, em 2004, muita água passou debaixo da ponte. “Me adaptei muito bem a BH, me formei e fiz a minha carreira, criei grandes amigos, constituí família, e ficava encucado com esse negócio de retribuir”, informa ele. Até que numa conversa com Sílvia Rubião, sócia na editora Conceito e sobrinha do célebre contista Murilo Rubião (1916-1991), eles identificaram “um vácuo editorial a ser preenchido”.

“Havia muito pouca coisa que falasse sobre a cidade, em todas as áreas, e o que a gente sabia e poderia fazer era criar uma coleção que fosse uma espécie de celebração a Belo Horizonte e também um presente”, explica José Eduardo, que ressalta o ineditismo da empreitada. “Não havia nada parecido no país e até hoje não há, lá atrás nos inspiramos em uma coleção do Rio de Janeiro, mas que não foi pra frente”, observa. Desde então, “BH. A Cidade de Cada Um” converteu-se num clássico.

José Eduardo Gonçalves idealizou a coleção com Sílvia Rubião // Crédito: Élcio Paraíso/Divulgação

Infinita

Os primeiros volumes foram publicados com as assinaturas de Wander Piroli, Fernando Brant e Jairo Anatólio Lima, abordando a “Lagoinha”, o “Mercado Central” e o “Estádio Independência”, respectivamente. Nesta terça (10), para comemorar as duas décadas de existência, a iniciativa chega ao expressivo número de 40 livros com o lançamento de “Colégio Marconi”, do aclamado escritor mineiro Luiz Vilela, vencedor do Prêmio Jabuti em 1974 com “O Fim de Tudo”; e ainda atualiza as obras “Carmo”, de Alberto Villas; “Morro do Papagaio”, de Márcia Maria Cruz; e “Serra”, de Nereide Beirão. Para completar, já em 2025 novos escritos prometem contemplar o Zoológico da Pampulha, a Praça da Liberdade e também os bairros Santa Efigênia e Pindorama.

“Quando lançamos a coleção, a gente não tinha a menor ideia de quanto tempo ia durar, se teria fôlego para continuar, lugares para falar, mas percebemos que a cidade é infinita”, sustenta José Eduardo, que atribui o sucesso a decisões editoriais como a escolha por um “projeto simples, acessível, barato, com foto só da capa”, e, principalmente, ao critério que estrutura as publicações.

“Só chamamos pessoas que tenham vínculo com os lugares para escrever. Precisa ter vivido no bairro, estudado na escola, ou frequentado aquele ponto por muito tempo, com essa legitimidade para falar sobre o lugar. Ninguém escreve para a coleção só por ter o texto bom…”, assegura ele.

Afeto

José Eduardo pontua que não se trata de “uma coleção de historiadores”. “É um olhar de alguém que representa aquela comunidade”, afiança. Foi a partir do “afeto e da memória” que a escritora e jornalista Márcia Cruz escreveu a edição que trata sobre o Morro do Papagaio, onde ela ainda morava na época, junto a uma apuração que intencionou tratar “de forma ampla do aglomerado”.

“Quando fui para a faculdade de jornalismo, achava que, de maneira geral, as matérias focalizavam apenas o aspecto negativo das favelas, e meu interesse era contar a dinâmica do lugar e das pessoas. As histórias de lá são universais como de qualquer outro lugar”, salienta Márcia, que buscou elaborar uma linguagem que fosse, “ao mesmo tempo, jornalística e literária…”.

Márcia Cruz escreveu novos capítulos sobre o Morro do Papagaio // Crédito: Fernando Rabelo/Divulgação

Agora, com o original de 2009 esgotado, ela acrescentou acontecimentos dos últimos 15 anos. O capítulo que motivou a revisão do livro é dedicado à restauração da Casa da Fazendinha, um dos primeiros casarões da cidade, e, atualmente, palco de exposições e atividades culturais. 

Um perfil de MC Rick, cria da comunidade e hoje estrela do funk nacional, transformações urbanas e sociais e um relato bastante pessoal também foram incluídos. “O sonho da minha avó era ver as netas ou a filha se casando. Eu me casei só agora, em 2024, e conto essa história no livro”, revela Márcia, para quem “escrever é uma maneira de transformar e eternizar os lugares e repassar o amor para futuras gerações”. “Antes de ser autora, eu era leitora da coleção”, conta ela. 

Papel

O sonho que Márcia tinha de escrever sobre suas origens e retirar a cortina de preconceito e estigma do Morro do Papagaio – objetivo atingido com o esgotamento da primeira edição do livro –, teve o dedo do jornalista, escritor e pesquisador Jorge Fernando dos Santos, que, na ocasião, trabalhava como seu editor na imprensa diária.

Além de indicar as publicações sobre o Morro do Papagaio e o Padre Eustáquio, escrito por Jeferson de Andrade, e, de quebra, ser citado nos volumes sobre a Praça Sete e os bairros Carlos Prates e Floresta, ficou a seu cargo o volume sobre o Caiçara, com “textos em forma de crônicas, mas sem deixar de lado dados históricos e informativos sobre o bairro, sua formação e seus moradores”, assinala Jorge Fernando.

Jorge Fernando escreveu para a coleção sobre o bairro Caiçara // Crédito: Élen Márcia de Souza/Divulgação

Ele define “BH. A Cidade de Cada Um” como um dos acontecimentos “mais importantes do mercado editorial mineiro”. “Tenho todos os números e acho também interessante que tenham sido escritos por autores diferentes, cada qual com seu estilo narrativo e seu ponto de vista sobre o tema abordado. Essa coleção deveria ser adotada em todos os colégios da cidade, tanto escolas públicas quanto particulares. Além de contar a história do município, é uma declaração de amor à capital dos mineiros”, analisa Jorge Fernando, ecoando um pensamento de seus idealizadores. 

“É sempre uma declaração de amor e também uma luta contra o esquecimento”, corrobora José Eduardo Gonçalves, obstinado em alterar a autoestima dos habitantes. “Não é a cidade mais bonita do mundo, mas também não é a mais feia. É a nossa cidade, da coletividade. O que nós propomos é um olhar de compreensão”, sublinha o editor. Papel que vem sendo “cumprido com muita galhardia”, finaliza Jorge Fernando.

Serviço

O quê. 20 anos da coleção “BH. A Cidade de Cada Um” com lançamento do livro “Colégio Marconi”, de Luiz Vilela

Quando. Nesta terça (10), às 18h30

Onde. Teatro Francisco Nunes (av. Afonso Pena, 1.321, Parque Municipal)

Quanto. Gratuito, o livro será vendido a R$40