A primeira vez que muitos noveleiros brasileiros tiveram algum contato com a cultura turca na televisão provavelmente foi com “Salve Jorge”, trama de Gloria Perez que estreou no horário nobre da Globo em 2012. Parte da produção era ambientada na Capadócia, na Turquia, onde São Jorge nasceu, e tinha entre as temáticas não só a fé no santo e a força que todos precisam ter para matar os dragões da vida, como também o tráfico humano.
Mas foi somente em 2015, quando a Band exibiu “Mil e Uma Noites” e “Fatmagul: A Força do Amor”, que as novelas originalmente turcas começaram a se destacar no Brasil. De lá para cá, a "dramaturquia" – como alguns fãs apelidaram este boom – vem ganhando cada vez mais espaço, e não só nas TVs aberta (Record) e fechada (Canal Viva), mas também no YouTube e, principalmente, no streaming (Netflix, Globoplay e Max).
Para o vice-presidente artístico da Record, Marcelo Silva, esse sucesso é atribuído a vários fatores. A emissora, aliás, exibe desde o fim de julho a novela turca “Força de Mulher”, que conquistou a vice-liderança isolada no horário de exibição em todas as capitais e já alcançou mais de 42 milhões de brasileiros desde a estreia. Para ele, o interesse do público pela trama se deve “às fortes temáticas relevantes ao universo feminino e à representação da história de superação e sobrevivência de uma jovem viúva que luta com força e resiliência para cuidar de seus filhos”. Mas, de uma forma geral, na opinião do executivo, as produções da Turquia têm as suas peculiaridades. “Primeiramente, a qualidade da produção, com roteiros bem-elaborados e atuações marcantes. Além disso, as tramas turcas frequentemente abordam questões universais, o que facilita a conexão emocional e a identificação com o público brasileiro”, defende Silva.
A dramaturgia turca tem conquistado espectadores e, principalmente, espectadoras brasileiras, e de todas as idades. Esse é o caso da empresária Priscila Pereira, 41. Segundo ela, as novelas e séries da Turquia mudaram a sua vida. E não é força de expressão. Noveleira assumida desde criança, Priscila, que é natural de Botucatu, interior de São Paulo, costumava assistir aos folhetins com a mãe. Quando ela faleceu, no começo de 2020, Priscila ficou sem chão, e foi uma dica de sua cunhada que a ajudou a ocupar a cabeça e retomar a vida: assistir a “A Sonhadora” (“Erkenci Kuş”, em turco), “dizi” – termo turco que se refere a novelas ou séries de televisão do país – que, inclusive, acaba de chegar ao catálogo do Globoplay.
“Eu senti muito a perda da minha mãe, e a novela me ajudou a me desligar do mundo. Era como uma terapia. Quando chegou ao fim, eu fiquei desesperada e falei: ‘O que vou fazer?’. Aí surgiu a ideia de criar uma página e falar sobre novelas turcas. Eu pegava os episódios (a maioria tem duas horas de duração), fazia resumos e os disponibilizava no meu perfil do Instagram. Naquela época, as novelas turcas ainda não estavam no streaming. A gente acompanhava pelo Telegram e YouTube”, recorda.
Foi assim que nasceu o Novelinhas Turcas (@novelinhasturcas), perfil no Instagram com dicas, informações e curiosidades sobre as produções daquele país. Quando atingiu 15 mil seguidores (hoje são cerca de 112 mil), Priscila decidiu dar um passo mais ousado. “Eu queria me sentir mais próxima ainda da Turquia. E a gente não achava nada das novelas e séries no Brasil, só em sites de fora. Eu estava procurando alguma coisa personalizada para mim, e aí decidi eu mesma fazer. Sempre trabalhei com representação comercial, mas nunca com confecção, com estampa”, conta a empresária.
Deu tão certo que Priscila Pereira abriu uma empresa de e-commerce que produz vários objetos, como camisetas e canecas, personalizados com as tramas, personagens e expressões da Turquia. “Hoje, eu trabalho exclusivamente com isso. Virou a fonte de renda principal da família. Eu faço a criação, e o meu marido, que fez curso e comprou o maquinário, bota a mão na massa. O que começou como algo despretensioso, uma terapia, virou nosso ganha-pão. E a página no Instagram eu ainda alimento com muito prazer. A gente literalmente une o útil ao agradável”, celebra Priscila, que chegou a conhecer o país, situado entre a Europa e a Ásia, no ano passado. “No passado, a Turquia nunca esteve nos meus planos de viagem, mas eu quis conhecer justamente por conta da influência que as novelas têm na minha vida. A gente quer sentir o ar de lá, quer provar o chá, as comidas, conhecer os cenários onde se desenrolam as histórias. Fiquei apaixonada, e foi emocionante”, salienta.
Pesquisa
Estudiosa do tema há anos, Gabrielle Camille Ferreira credita o sucesso dessas narrativas a uma combinação de elementos. “A maior parte das novelas turcas tem uma boa qualidade de produção, é filmada em locações externas e enfatiza muito as paisagens e os pontos turísticos da Turquia. Elementos da cultura turca também são retratados. Então, as produções de lá têm esse aspecto de novidade. Ao mesmo tempo, já estamos familiarizados com as dinâmicas do melodrama por conta da nossa tradição em novelas. É algo conhecido, mas com uma roupagem nova”, defende.
O fato de as tramas turcas serem consideradas “mais recatadas e retratarem valores mais conservadores” também é um ponto importante. “Muita gente que participou da pesquisa sobre a recepção das séries turcas no Brasil comentou que elas lembram as novelas brasileiras mais antigas ao representarem romances leves, famílias unidas e respeito pelos mais velhos”, acrescenta.
Gabrielle, que atualmente mora na Noruega, onde foi selecionada para o doutorado na Universidade de Oslo para trabalhar num projeto que busca entender a expansão das séries turcas no contexto europeu, comenta que, pelo fato de terem episódios mais longos, as séries e novelas turcas têm um ritmo diferente do que estamos acostumados, desenvolvendo os personagens com maior profundidade.
“As séries turcas também dão muita ênfase às emoções e tendem a seguir a fórmula melodramática que é utilizada pelas telenovelas. Outra característica são os temas universais que elas abordam, como romance, conflitos familiares e busca por justiça”, diz. Já em relação ao fato de a teledramaturgia turca ser menos sexualizada, a pesquisadora explica que essa é uma característica que está muito ligada à cultura e à situação política na Turquia, que é um país de maioria islâmica.
“Além disso, tudo que é transmitido na televisão turca tem que passar pelo crivo do Conselho Supremo de Televisão e Rádio (RTÜK), responsável por monitorar e regular o conteúdo televisivo. Por conta disso, as produtoras e emissoras adotam estratégias de autocensura para evitar as multas e sanções aplicadas pela RTÜK. As narrativas mais recatadas são uma consequência da cultura e censura”, esclarece.
O curioso, salienta Gabrielle Ferreira, é que, antes de a Turquia começar a produzir as próprias novelas, as emissoras de TV de lá importavam folhetins do México e do Brasil. “Então é bem possível que as nossas novelas tenham influenciado as novelas turcas. Mas, para além das especulações, é certo que tanto as tramas turcas quanto as brasileiras têm suas raízes no melodrama. Isso significa narrativas que enfatizam as emoções e os sentimentos, com personagens muitas vezes estereotipados, como a mocinha e o vilão, e um final que busca mostrar o triunfo do bem sobre o mal”, resume.
Sucesso entre os players
Se antes os fãs das novelas turcas tinham que acompanhar as produções pelo Telegram ou YouTube, hoje não faltam opções. Enquanto no Viva, canal a cabo notório por exibir tramas antigas da Globo, “O Segredo de Feriha” faz muito sucesso, praticamente no mesmo horário “Força de Mulher”, na Record TV, vem se destacando. Há uma expectativa até de o SBT começar a investir no gênero e disponibilizar novelas turcas e coreanas em seu streaming, o +SBT.
E, por falar nas plataformas “on demand”, Netflix, Max e Globoplay já investem nesse filão há um tempo. Guga Valente, gerente de estratégia de conteúdo do streaming da Globo, explica que, além dos títulos nacionais, que são o carro-chefe da empresa, em 2021 o Globoplay ampliou o leque.
“Decidimos investir em novelas internacionais para expandir e fortalecer o gênero mais consumido do Globoplay e possibilitar aos assinantes o acesso às tramas de maior sucesso no mundo – afinal, novela é uma das grandes paixões do brasileiro. Desde então, além das novelas da Globo (atuais e de acervo) e originais, o Globoplay conta com sucessos de diversas nacionalidades, incluindo as novelas turcas (atualmente são dez no catálogo), que são muito bem recebidas e têm um público fiel”, comenta.
Para o executivo, a boa performance de consumo das tramas turcas no Globoplay se dá por conta da alta qualidade dessas produções. “As narrativas são cativantes, com dramas superelogiados e que prendem o consumidor fiel do gênero. Além disso, os roteiros trazem muita semelhança com as novelas brasileiras, com temas de compatibilidade com diversas culturas, abordando, por exemplo, questões de família e amor. E ainda contam com cenários caprichados, belos figurinos e de época, personagens multifacetados e histórias com emoção, romance e efeitos especiais. Desde que iniciamos a disponibilização em nosso catálogo, as produções turcas têm conquistado cada vez mais os assinantes e frequentemente estão no top 10 de novelas mais assistidas do Globoplay”, ressalta Valente, lembrando que entre as produções turcas de maior sucesso na plataforma estão “Mãe”, “Hercai T2”, “Hercai T1”, “Sr. Errado” e “Amor e Honra”.
Priscila Pereira, criadora do perfil Novelinhas Turcas, afirma que o atual momento é de celebração. “Para a gente que acompanha séries e novelas turcas há mais tempo, é uma grande vitória tudo isso que está acontecendo. Costumo brincar que, a partir do momento em que você assiste pela primeira vez a uma trama turca, é um caminho sem volta. É um produto diferenciado, e hoje nem acompanho mais novela brasileira”, opina. Netflix e Max foram procuradas pela reportagem, mas optaram por não se manifestar.
Série x novelas
Alguns chamam de “série”; outros de “novela”. Mas, afinal, qual é o termo correto? A especialista em novelas turcas Gabrielle Camille Ferreira explica que “novela turca” é um apelido que as produções que têm essa origem receberam na América Latina e na Espanha pela semelhança com os nossos folhetins. A pesquisadora frisa que o nome que essas produções recebem na Turquia é “dizi”.
“Não são exatamente novelas nem séries, embora a gente as chame assim e ambos os termos sirvam para se referir às ‘dizi’. No caso das ‘dizi’ produzidas para a televisão turca, cada episódio pode ter mais de duas horas de duração, e elas são geralmente exibidas uma vez na semana e divididas em temporadas. É que a indústria turca opera num modelo muito diferente do que a gente está acostumado no Brasil: em torno de 60 títulos diferentes são lançados ao ano, mas nem todos os projetos chegam ao final, já que, se a audiência não está satisfatória, o título é simplesmente cancelado e substituído”, elucida.
Ainda segundo Gabrielle Ferreira, as “dizi” produzidas para os streamings, como a Netflix, já se aproximam mais do formato das séries, com episódios mais curtos e maior liberdade criativa, visto que os números da audiência não são decisivos como no caso da TV – mas ainda assim contam com outras particularidades das produções turcas. “Resumindo: novelas e séries turcas são dois nomes diferentes para a mesma coisa”, crava.
A especialista ressalta que, comparada com o Brasil, a produção de novelas na Turquia é bastante recente. Enquanto por aqui o gênero teve início na década de 1950, a Turquia só começou a produção em maior escala no final dos anos 1990. “As exportações das novelas turcas se tornaram expressivas em meados dos anos 2000, quando elas começaram a fazer sucesso no Oriente Médio e no Norte da África. Então é um fenômeno bem recente se comparado com as novelas brasileiras, embora antes das 'dizi’ eles já tivessem uma tradição no cinema”, pontua.