À medida que os caminhos de Juliana Flores, 39, se iluminaram rumo à produção cultural, com a mineira direcionando seu farol para a arte pública – aquela que pode ser acessada fora das galerias, ao transitar pelas cidades – também se iluminou Belo Horizonte, e outros tantos territórios.

Jornalista por formação, Juliana foi, pouco a pouco, se entendendo como produtora, seu ofício de vocação. Ou melhor, “realizadora-mediadora”, como ela prefere se descrever por achar que o termo é mais adequado por realçar o atributo da mediação, exigido em seu dia a dia em intermináveis cafezinhos para fazer conciliar, no limite do possível, os desejos de artistas, moradores, patrocinadores, poder público e outras tantas pessoas e instituições impactadas por projetos que mexem com a cartografia, o ritmo e as cores das cidades.

Agora, um dos nomes por trás de projetos bem-sucedidos como o Circuito Urbano de Artes (CURA), que realiza desde 2017 ao lado das amigas Janaína Macruz e Priscila Amoni, e a Festa da Luz, feita em parceria com a Híbrido Produções, especializada na coordenação de projetos de pesquisa e produção em artes cênicas, Juliana estreou em uma nova e desafiadora função: a direção artística da tradicional Iluminação de Natal da Praça da Liberdade e dos shows de drones, realizados em duas ocasiões, o primeiro no dia 12 e, o próximo, na noite de réveillon.

A praça da Liberdade iluminada para o Natal | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
A praça da Liberdade iluminada para o Natal | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

O resultado, garante, está agradando. “As pessoas estão muito felizes e elogiando e falando, satisfeitas de ver a praça iluminada”. Não que tenha sido fácil.

“É uma das coisas mais difíceis que já fiz na vida, porque, neste caso, minha liberdade de criação tem um limite: o tema do Natal, que precisava ser conjugado com a cultura popular de Minas Gerais, com a mineiridade, como foi estabelecido pela Cemig e pelo Governo do Estado, que, respectivamente, patrocina e realiza o projeto”, reconhece ela, acrescentando que o desafio ainda foi incrementado por outro fator: desta vez, tinha a sensação que seu trabalho seria apreciada por uma multidão de especialistas.

“Todo mundo entende muito de Natal, todo mundo tem suas tradições natalinas, seus símbolos, todos entendem das liturgias que a data envolve. Então, senti aquela apreensão, me perguntando como seria a recepção do que estávamos fazendo”, examina. 

Papai Noel gigante com uma fatia de queijo na decoração natalina da praça da Liberdade | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
Papai Noel gigante com uma fatia de queijo na decoração natalina da praça da Liberdade | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Reconhecendo que o público era também a maior autoridade daquele assunto, ela decidiu ouvir um punhado desses especialistas para, então, dar direcionamento ao projeto. “A primeira coisa que a gente fez foi conversar com pessoas, descobrir o que queriam ver, quais eram suas expectativas. O que descobrimos foi que havia um sentimento de saudade da praça de antigamente, do pisca-pisca tradicional. E foi nisso que apostamos: em um projeto que valorizava essa tradição, essa decoração clássica, com uma composição de cores bonita”, explica.

Para o projeto, Juliana chamou a artista Gabriela Luiza, que fez todo o projeto de iluminação. “Além disso, pensamos em instalações que celebrassem símbolos do Natal e da mineiridade. Então, chamei o ilustrador JJBZ, que criou um Papai Noel gigante que carrega um pedaço de queijo. Já as bolas de Natal em grande escala, além do simbolismo natalino, fazem homenagem ao bordado de Minas, com desenhos feitos pelas Bordadeiras de Sinhá (um grupo de mulheres da comunidade Alto Vera Cruz, em BH). E a gente também traz o sino que dialoga com a religiosidade e também com a cultura dos sineiros, considerada um patrimônio nacional”, expõe. 

Também dialogando com a fé, foi montado um presépio, em frente ao Palácio da Liberdade, com peças em grande escala feitas pela artista Anísia, do Vale do Jequitinhonha. “A gente quis trazer esse presépio do Jequitinhonha porque o Natal é também para nos lembrar da riqueza do que é simples”, indica, sublinhando entender que o projeto não é arte em sua essência. “Mas, mesmo assim, quisemos trazer camadas artísticas, com muitos artistas assinando trabalhos na iluminação, nas instalações e na direção do projeto”, exalta.

Presépio feito pela artista Anísia, do Vale do Jequitinhonha, nos jardins do Palácio da Liberdade | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
Presépio feito pela artista Anísia, do Vale do Jequitinhonha, nos jardins do Palácio da Liberdade | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Literatura selou caminho rumo à arte pública

Juliana é uma belo-horizontina nata. Nascida e criada na cidade, ela é filha de pais que também foram nascidos e criados em BH. Formada em jornalismo pela PUC, ela chegou a trabalhar como produtora de telejornalismo. A produção, como se vê, sempre foi seu norte. 

Em 2009, fundou com sua mãe, Rosana, uma editora de livros infantis, a Aletria. “Eu acredito que a semente do trabalho com produção artística foi plantada nesse momento”, examina, lembrando que o segmento da literatura infantil recorre muito à narrativa visual. “Eu trabalhava com ilustradores, precisei fazer uma grande pesquisa de sobre essa cena e pude editar livros de grande relevância estética, que receberam premiações internacionais. Foi lá também que comecei a organizar eventos, como feiras de livros e festivais literários”, reflete.

Juliana Flores no coreto da praça da Liberdade | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
Juliana Flores no coreto da praça da Liberdade | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Em 2014, ela começa a colaborar com o artista visual Thiago Mazza. Colaborar, não precisamente trabalhar, porque o vínculo entre eles não era precisamente profissional. E nunca chegou a ser. “Na verdade, era mais uma coisa de uma amiga ajudando um amigo”, reconhece, adiantando que tudo frutificou nessa troca: a amizade virou namoro, que virou casamento.

E, daí, nesse compartilhar vidas e sonhos, um desejo antigo de Mazza catapultou a história de Juliana rumo à carreira de produtora de festivais de arte pública. “Ele queria muito pintar uma empena de um prédio. E eu, partindo dessa experiência de projetos literários, sugeri fazer isso no contexto de um festival. Nesse momento, a Priscila (Amoni), uma amiga minha, me chamou para entrar nesse projeto”, comenta. 

Obra de Bahati Simoens em desenvolvimento no Edificio D'Ávila, durante a edição do CURA em 2024 | Crédito: Thomás Santos/O Tempo
Obra de Bahati Simoens em desenvolvimento no Edificio D'Ávila, durante a edição do CURA em 2024 | Crédito: Thomás Santos/O Tempo

“Foi assim, do sonho desses dois artistas, que nasce o CURA, que, já na primeira reunião que fizemos, teve participação também da Jana (Macruz), que é uma produtora cultural de grande experiência em Belo Horizonte, em várias áreas, e, na época, estava fazendo a produção do primeiro grande projeto de arte urbana da cidade, que foi o Telas Urbanas, da prefeitura”, lembra. 

Juliana, Priscila e Janaína começaram a trabalhar juntas a partir de 2015. Dois anos depois, elas realizam a primeira edição do evento.  

De corpo e alma

“Eu me entreguei completamente ao CURA”, reconstitui Juliana Flores, que havia perdido seu primeiro filho em fevereiro daquele 2017. “Talvez por isso tenha desenvolvido uma relação muito pessoal com o projeto, que fez parte do meu processo de luto, que foi como uma cura para mim”, analisa. Foi também durante a primeira edição do festival que ela descobriu a segunda gravidez. “Foi uma grande notícia, que encerrou aquela ciclo anterior”, complementa.

Provavelmente influenciada pela série de acontecimentos viscerais, ela ficou arrebatada pelo trabalho com arte pública e, já naquele momento, decidiu criar uma empresa especializada na concepção e produção desse tipo de projeto. A gestação da empresa foi relâmpago e, antes do nascimento de José, a produtora já tinha em mãos o CNPJ da Pública, criada, inicialmente, com outros dois sócios, Ivan Caiafa e Janaína Macruz. Hoje, a empresa é liderada apenas por Juliana.

E o primeiro trabalho com a Pública também veio logo, ainda naquele 2017, quando, junto das parceiras de estrada, realizou uma edição especial do CURA celebrando os 120 anos de BH. “Foi quando, pela primeira vez, iluminamos os murais”, recorda.

No total, foram 40 casas pintadas na terceira edição do projeto MAMU | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo
No total, foram 40 casas pintadas na terceira edição do projeto MAMU | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

Na sequência veio o MAMU – Morro Arte Mural, um projeto de arte pública realizado nas periferias, que chega a sua 4ª edição em 2025. “Vamos fazer na Serra e estamos com expectativa de levar a iniciativa também para o Rio de Janeiro”, sinaliza, mencionando que, na capital fluminense, já realizou projetos de arte no Galeão – “o objetivo era trazer arte brasileira para pessoas que estavam chegando de voos internacionais”, explica.  

Depois, a seminal experiência com iluminação de murais na edição especial do CURA foi expandida na Festa da Luz, realizada pela primeira vez em 2021. “Foi uma ação realizada com meus sócios da Híbrido, que tinha esse projeto no papel há 7 anos”, cita. 

Entre uma nova empreitada e outra, Juliana, com a Pública, realizou outros projetos em parceria com organizações não governamentais, festivais de música e outras instituições. “Minha paixão é olhar para o espaço público e levar arte para esse lugar, para que seja acessada pelo maior número de pessoas possível”, resume.

O Viaduto Santa Tereza durante a última edição da Festa da Luz, realizada em maio de 2024 | Crédito: Cadu Passos/Divulgação
O Viaduto Santa Tereza durante a última edição da Festa da Luz, realizada em maio de 2024 | Crédito: Cadu Passos/Divulgação

As pedras no caminho

Juliana Flores define arte pública como um grande guarda-chuva de arte disposta no espaço público, de livre acesso. “Imagine, então, quantos desejos e interesses coabitam o mesmo espaço que essa arte. Por isso, eu falo que, no fim das contas, sou uma grande mediadora, uma ‘realizadora-mediadora’. Meu trabalho é mediar desejos”, estabelece, recorrendo a uma frase um quê poética para falar de um dia a dia um quê burocrático. Afinal, “mediar desejos” significa, em última instância, conseguir autorizações, patrocínios, apoios. 

“Preciso sempre conversar com o poder público, com moradores, pensar no impacto que vamos causar no dia a dia da cidade. Não é uma tarefa simples”, reconhece, acrescentando que o desafio é ainda maior por ter na liberdade artística um valor inegociável, de forma que as obras que serão realizadas não passam por nenhum tipo de aprovação prévia, seja de moradores ou patrocinadores.

Ao longo do tempo, diga-se, pedras se impuseram no caminho. Em 2020, por exemplo, Juliana, Janaína e Priscila tiveram que lidar com o processo de um único morador que, entre 55 condôminos a favor, entrou com ação judicial pedindo que obra da artista Criola fosse apagada de um prédio no Centro de BH. A dor de cabeça durou dois anos, sendo que, em 2022, a Justiça negou o pedido de remoção do mural de 1.365 m² que, não por acaso, denuncia o preconceito. 

Obra da artista Criola, realizado no CURA, que foi alvo de processo | Crédito: Divulgação/CURA
Obra da artista Criola, realizado no CURA, que foi alvo de processo | Crédito: Divulgação/CURA

Um ano depois do anúncio daquele processo, as realizadoras do projeto, que criou a maior coleção de arte mural em grande escala já feita por um único festival brasileiro, precisaram reagir a outro transtorno, um tanto mais grave: em 2021, elas foram incluídas em um inquérito da Polícia Civil de crime contra o meio ambiente. A acusação de pichação se referia à obra “Deus é mãe”, realizada no edifício Itamaraty, também no centro da capital mineira. “Minha segunda filha, Rita, tinha uma semana de vida quando recebi a intimação”, lembra Juliana, citando que até os patrocinadores foram chamados a depor presencialmente, em meio à pandemia da Covid-19, em uma delegacia. 

“A marca e a relação que construímos com os patrocinadores estava em jogo. Então, precisamos reagir à altura. De pronto, nós montamos toda uma estratégia de comunicação para denunciar como tudo aquilo era absurdo. E, felizmente, a sociedade civil comprou a briga. A imprensa também. Eu lembro, na época, de dizer que a gente precisava que o William Bonner falasse, no ‘Jornal Nacional’, que aquela medida era descabida. E, por acaso, foi o que aconteceu”, celebra, inteirando que o período representou um marco para o evento, que nunca havia tido tanta atenção. É como se, até as pedras no caminho, elas tivessem iluminado e dado novas cores. “Para nós, foi uma oportunidade de debater o que é arte urbana”, garante.

Paixão pelo efêmero

Ao intercambiar entre diferentes projetos, Juliana vai fazendo escola. Aprendeu, por exemplo, que algumas ações podem ampliar a durabilidade de um painel de arte urbana – que, naturalmente, se desgasta com o tempo por ficar exposta, 24 horas por dia, sete dias por semana, a toda sorte de intempéries, das chuvas torrenciais ao calor extremo.

“No MAPA (Mostra de Arte Pública), um projeto que faço desde 2023 em Itabira, passei a usar um material super tecnológico e hidro-repelente, que aumenta em 10 anos a expectativa de vida dessas obras. Usamos essa tecnologia também em um mural de 360º que produzimos na Favela Haiti, em São Paulo”, expõe, detalhando que não consegue usar o produto em todos os festivais que participa por uma questão orçamentária. Nesse sentido, há outro aprendizado que ela ressalta: lidar com mais serenidade com o que é efêmero e com a ação do tempo.

Obra "Pirilampos do Planeta", que ocupa o pátio do CCBB BH | Crédito: Thiago Santos Martins/Divulgação
Obra "Pirilampos do Planeta", que ocupa o pátio do CCBB BH | Crédito: Thiago Santos Martins/Divulgação

O interesse por aquilo que tem prazo para acabar, inclusive, levou Juliana a descobrir uma nova paixão: as instalações. A mais recente com a qual trabalhou foi “Pirilampos do Planeta”, montada no pátio do Centro Cultural Banco do Brasil - Belo Horizonte (CCBB BH).  A obra, que simula um lustre em grandes proporções, é uma criação de Lula Duffrayer e Flavio Carvalho, e combina arte e sustentabilidade, sendo composta por cerca de uma tonelada de resíduos plásticos reutilizados.

Outro exemplo, em seu portfólio, é a própria Festa da Luz, realizada sempre ao longo de apenas quatro dias, quando faz o centro de Belo Horizonte ser iluminado por um conjunto de ações, incluindo projeções de video mapping e instalações luminosas. “É um projeto que privilegia obras originais, que recebe muitos protótipos, que convida artistas que nunca trabalharam com esse formato a realizar um trabalho assim”, aponta. “Nesse caso, até pensamos em como circular as obras realizadas para além do evento em si, levando as peças para festivais de música, por exemplo”, indica. 

A Festa da Luz, claro, se conecta com a mais recente empreitada de Juliana: a iluminação de Natal da Praça da Liberdade. “Mas, ao mesmo tempo, são propostas muito diferentes entre si. Uma tem mais liberdade, a outra está condicionada a um tema. Uma é realizada ao longo de um período curto, a outra dura mais de 45 dias”, compara, explicando que, para garantir todo esse tempo em exposição, e em um período chuvoso, foi preciso pensar cada solução e investir na manutenção semanal do projeto.