O pouso é interrompido pelo disparo, que fere mas não impede o voo, como se a imaginação desse um drible na realidade. Hugo Sukman parece coberto de razão quando considera ser impossível citar uma única canção de Tom Jobim (1927-1994) que se conecte ao momento do país, até que se decide, hesitante, por “Passarim”, cujos versos iniciais “passarim quis pousar, não deu, voou/ porque o tiro partiu mas não pegou”, ele destrincha com sagacidade.
“Parece essa eterna tentativa do Brasil de se emancipar, de viver harmonicamente, mas tem sempre alguém para queimar a floresta, matar o índio, escravizar a mulher, e o Tom já falava isso”, recupera o jornalista carioca.
Fruto do acaso ou mera coincidência, fato é que essa mesma canção, lançada em 1985 como trilha sonora da minissérie “O Tempo e o Vento”, baseada na obra de Érico Veríssimo, abre o álbum “Jobim Canção”, de Arthur Nestrovski e Paula Morelenbaum, que homenageia o Maestro Soberano nos 30 anos de sua morte, completados neste domingo (8).
“O que é mais forte em todas as composições de Jobim é o que não dá para analisar, é a presença que se reconhece no primeiro acorde, nos dois primeiros compassos, quando você é tragado para um universo em que essa força humana se instaura de imediato. Não tem explicação e nem o artista controla ou sabe o que é, mas é quem ele é”, filosofa Nestrovski, que define tal característica como o “misterioso núcleo secreto de cada compositor”. Feitas tais considerações, “o resto é trabalho”, diz.
Estilo
Segundo Nestrovski, “a artesania e o virtuosismo da fatura” de Jobim fica perceptível ante a leitura das partituras do maestro, exercício ao qual ele se dedicou a partir dos anos 2000, quando todas foram publicadas por Paulo Jobim, músico e filho de Tom, que morreu em 2022, aos 72 anos.
“As partituras revelam centenas de detalhes e minúcias primorosas do artesanato da composição e da arte do compositor em um nível muito elevado de forma, harmonia, com soluções engenhosas de melodia”, afiança Nestrovski, que, em 2007, colocou na praça “Jobim Violão”, com 14 canções que ele transcreveu do piano para o violão. “Ali não tem propriamente arranjo, é o que está na partitura de modo muito direto, sem introduções, improvisos, porque já era tão impressionante, bonito”, conta. Esse minimalismo também conduziu o novo CD.
A opção por canções que aparecem “muito claras, na sua essência” uniu o apuro técnico de Nestrovski no instrumento ao canto evanescente, quase imaterial de Paula Morelenbaum, que acompanhou Jobim durante a última década de sua trajetória como integrante da Banda Nova. Em algumas faixas, João Camarero, ás do violão de sete cordas, e o pianista José Miguel Wisnik realizam participações especiais.
O álbum surgiu como consequência de videoaulas que Paula e Nestrovski gravaram para o YouTube. A intérprete logo teve a ideia de registrar canções de Jobim inéditas em sua discografia, e enviou uma extensa lista para Nestrovski, o que culminou nas enxutas dez, “algumas célebres, outras praticamente desconhecidas”, que compõem o trabalho.
Encontros
“Cala, Meu Amor”, por exemplo, foi uma surpresa para o próprio Nestrovski, que “nunca a tinha ouvido, até tocar a partitura”. “Estamos resgatando essa pérola que estava perdida entre tantas maravilhas”, afirma o violonista. Com letra de Vinicius de Moraes, o samba-canção data de 1958, marco de outro movimento fundamental na trajetória de Jobim: a Bossa Nova.
“Ao finalizar o álbum, me dei conta que a gente tinha abordado, incrivelmente, cinco décadas de atividade musical, desde os anos 1950 até 1993, com ‘Piano na Mangueira’ (parceria com Chico Buarque), que está no último disco do Jobim”, revela Nestrovski. Ele e o maestro se encontraram uma única vez, na churrascaria Plataforma, onde Tom batia ponto diariamente. “Foi um contato rápido, de ‘bom dia, prazer’, mas o cumprimentei sabendo quem era”, recorda.
Tom estava na mesma churrascaria no dia em que o jornalista Hugo Sukman telefonou para sua casa, a fim de ouvi-lo a respeito de uma matéria que enfocava o legado do arranjador e pianista Radamés Gnatalli (1906-1988). Ao receber o aviso, o maestro prontamente voltou ao lar para “uma conversa sempre muito agradável e ampla”.
De outra feita, Sukman o entrevistou cara a cara, sem a distância telefônica, e o surpreendeu com um dicionário na mão, estupefato ao descobrir que a palavra ‘sertão’ não tinha origem etimológica definida. “Tom era esse carioca da Zona Sul, que andava pelo calçadão, com uma cultura vasta, meio de livro e meio da rua, da praia, da conversa de bar. Isso se reflete na obra dele, que é carioca e universal”, opina Sukman.
Legado
O crítico musical exalta a clássica “Águas de Março”, com a sua “influência de um canto de macumba e um verso que ele tira do (compositor) Sidney Miller”, no caso “é pau, é pedra”, de “A Estrada e o Violeiro”. “Tom era uma tremenda antena, e, para mim, é o maior compositor do mundo!”, proclama Sukman, que declara que o melodista de “Garota de Ipanema” (com Vinicius), “construiu o Brasil moderno”. “Quando você ouve ‘Saudade do Brasil’, que não tem palavras, parece até um balé. É como se fosse o voo dum passarinho imaginário, que passeia do Rio Grande do Sul à Amazônia”, compara.
No início do ano, Silvia Machete invadiu as redes com o disco “The Invisible Woman”, em que dá voz a “Two Kites”, de Tom Jobim, ao lado de Maria Luiza Jobim, filha do maestro, que, com o pai, interpretou, na infância, o gracioso “Samba de Maria Luiza”. Curiosamente, Silvia confessa que via Jobim “como um pai”. “Eu só falei com ele uma vez, quando era menina. Disse ‘oi’ para o Tom na tradicional Plataforma, a churrascaria que ele amava”, compartilha a cantora, que destaca a paixão que Jobim nutria pela natureza.
“Ele sempre levantou essa bandeira ecológica”, sublinha. Sukman pontua que, durante décadas, Tom teve que conviver com “a fama de chato” pela obsessão com o tema. “O tempo nos mostrou que ele estava na vanguarda”, assegura.
O pianista André Mehmari, que subiu ao palco com Mônica Salmaso para tocar as canções do LP “Elis & Tom”, de 1973, revela o sonho de interpretar, ao lado da cantora, a inebriante “Matita Perê”, do mesmo ano. “Não é uma canção, é uma saga rosiana! Tem uma natureza que se conecta muito com Guimarães Rosa”, observa Mehmari, que, como “morador da Mata Atlântica há mais de 24 anos”, se identifica com “essa consciência da simbiose do homem com a natureza que o Tom tinha”. “O planeta está precisando de ajuda, se continuarmos nesse ritmo não teremos futuro”, alerta o músico.
Habituado a ouvir o maestro desde tenra idade, ele salienta que o LP “Passarim”, de 1987, pregou-se à sua memória definitivamente. “Tom falava de ecologia e consciência planetária com muita beleza e poesia”, diz Mehmari, que enaltece “a capacidade de síntese” de Tom ao piano. Sukman recorda uma anedota. Ao ouvir um sujeito reclamar que Tom tocava poucas notas ao piano, Edu Lobo retrucou: “Ele só toca as melhores”...