Há 30 anos, uma turma da pesada se reunia para botar para ferver o teatro em Belo Horizonte. Não que as artes cênicas por aqui já não estivessem quentes àquela época – os grupos Galpão e Oficcina Multimédia já tinham alguns anos de estrada, e outros começaram a dar seus primeiros passos, como o Armatrux e a Cia Pierrot Lunar –, mas faltava algo para fazer o caldo engrossar.

Era uma época em que a cidade buscava vínculos internacionais, e existia um desejo latente entre os grupos de unir palco à rua. Desses encontros, então, dos quais participavam nomes como do próprio Galpão, além de Eid Ribeiro, Chico Pelúcio e Carlos Rocha (então diretor do Teatro Francisco Nunes), surgiu o Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua (FIT), que entra em sua 16ª edição nesta quinta-feira (20).

Trinta anos depois e tendo sobrevivido “a várias crises políticas”, o FIT, que, em 2008, foi instituído como evento oficial bienal, mantém seu caráter formativo e de experimentação artística, na busca pelo espraiamento das artes cênicas para todos os cantos da cidade. “O FIT deu o pontapé para outros festivais surgirem em Belo Horizonte, que virou a capital dos festivais.

Ele é essencial como instrumento de formação para os artistas e para de circulação de obras, é um momento muito rico de encontro entre artistas e programadores do mundo inteiro. O festival ocupa a memória coletiva de toda a cidade de maneira muito marcante”, descreve a atriz do grupo Armatrux, Tina Dias, uma das curadoras do festival. Além dela, também fizeram parte da curadoria do FIT os atores Assis Benevenuto e Soraya Martins.

Durante 11 dias – o FIT acontecerá até 30 de junho – quase 200 artistas colocarão, em 22 espaços públicos e privados, 23 espetáculos ao longo de 53 apresentações, sendo três internacionais e oito trabalhos nacionais, vindos do Amazonas, Rio de Janeiro, São Paulo, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Sul e Bahia. A programação também inclui workshops, rodas de conversa, lançamento de livros, oficinas de dramaturgia e de atuação, além de uma residência artística.

“A área formativa do FIT sempre foi muito tradicional: ela funciona tanto como um espaço para reciclagem quanto de formação inicial. Nós pensamos em ações que pudessem envolver artistas de todas as faixas etárias, não só a para os novos atores, mas também para quem já atua há muito tempo. Afinal, o ator não se aposenta e está sempre estudando”, assinala Tina.

Neste ano, importantes nomes da cena teatral mineira estão presentes no festival como convidados especiais. São eles: a diretora Ione de Medeiros, e seu “Vestido de Noiva”, vencedor do Prêmio APCA; a artista Zora Santos, com a montagem “O Fim É uma Outra Coisa”, e Eid Ribeiro, que estreou “Fim de Partida” neste ano, em BH. “Um dos papéis da curadoria é reconhecer e valorizar o trabalho de pessoas importantes e de artistas renomados”, comenta.

Destaque da programação 

Para montar a programação, os curadores percorreram festivais de teatro de dentro e de fora do país. “Eu estive no Chile e lá conheci o ‘Santiago a Mil’ e o ‘Santiago Off’, festivais que ocupam um lugar especial no cenário cultural do país. Lá, vi obras do mundo inteiro, com mais de 100 convidados, incluindo dois artistas mineiros. Um dos destaques é ‘Ñuke, de um grupo indígena, que apresentou uma performance inspiradora sob a direção de Paula González. E o ‘La Cocina Pública’, projeto que trabalha construindo memórias através da comida, que ocupará o Alípio de Melo, levando a sua proposta para toda a região”, afirma a curadora do FIT Tina Dias. O outro destaque da programação internacional é o espetáculo “Papers!”, da companhia espanhola Xarxa Teatre.

Da programação nacional, a curadora destaca o espetáculo “Ubu Tropical”, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, do Rio Grande do Sul. “Eles são um grupo de referência do teatro brasileiro, com 46 anos de história. Infelizmente, o grupo sofreu muito com as enchentes no Rio Grande do Sul e tiveram a sede totalmente inundada.

'Ubu tropical' é um dos destaques. Foto: Maíra Ali Lacerda Flores/divulgação

 

Assistir aos vídeos sobre a situação foi difícil, e a gente chegou a duvidar se eles teriam condições de vir. Mas eles conseguiram se arranjar, pegaram instrumentos de pessoas daqui, e é emocionante ver a recuperação deles”, aponta.

Outro destaque da programação fica por conta do “CÁRCERE ou Porque as Mulheres Viram Búfalos”, da Companhia de Teatro Heliópolis, de São Paulo. A montagem conta a história das irmãs Maria dos Prazeres e Maria das Dores, que têm a vida marcada pelo encarceramento dos homens da família.

Encenador do espetáculo, Miguel Rocha afirma que o espetáculo nasceu de um processo de pesquisa realizado pelo grupo, que se dedica a explorar temas sociais.

“O grupo, que já havia trabalhado com a temática da Justiça em um projeto anterior, aprofundou sua pesquisa e percebeu que as mulheres carregam um peso desproporcional, tanto emocionalmente quanto em relação às condições de vida, em relação aos homens, quando há alguém preso”, analisa Rocha. O encenador diz ainda que a pesquisa se dedicou a entender como as mulheres, especialmente em Heliópolis, o berço do grupo, enfrentam dificuldades para conseguirem advogados públicos e terem um julgamento justo.

“A partir das entrevistas realizadas na própria comunidade, o grupo teceu um espetáculo que expande a pesquisa para a cena, mostrando como as mulheres são afetadas emocionalmente por todas as questões que as cercam. O espetáculo evidencia um contexto que se repete há séculos, desde o processo de colonização do Brasil”, fala. 

Investimento 

O festival, realizado entre a Prefeitura de Belo Horizonte, em parceria com o Instituto Odeon, recebeu investimento do executivo municipal R$ 2,7 milhões de reais – R$ 200 mil a mais do que na última edição, em 2022, quando esse aporte foi de 2,5 milhões. “O FIT hoje é um dos maiores festivais de teatro do Brasil, em importância e tamanho. Devido às várias crises políticas, ele não pôde ser realizado, e, mesmo tendo contado com um orçamento bem aquém do disponibilizado para grandes festivais, é uma grande referência”, evidencia a curadora e atriz Tina Dias.

Neste ano, o FIT traz como tema o “Teatro: Patrimônio Cultural – Pontes de Memória”, que celebra não somente os 30 anos do evento, como a consolidação do teatro como Patrimônio Cultural Imaterial de Belo Horizonte, título alcunhado em 2014.

 “Precisamos celebrar os mestres do teatro para não terem as memórias apagadas. E é preciso entender memória não só como manutenção do passado, mas para conseguirmos entender o que se quer construir para o futuro”, afirma Tina. A secretária municipal de Cultura, Eliane Parreiras, destaca que o investimento faz parte do orçamento da cidade. “Com isso, ele torna-se política pública estruturada, como outros festivais, tais quais o de literatura e o Festival de Arte Negra”, destaca.

Além disso, a descentralização do festival está no cerne da organização. Desta vez, haverá espetáculo nas novas regionais da cidade, além de uma apresentação em Sabará, na região metropolitana da capital.

“As últimas edições do festival tiveram a diretriz de descentralizar, mas estar nas nove regionais é recente. O festival é planejado com cuidado, levando em conta o ritmo da cidade e como as pessoas vivem nela. Quando ele completa 30 anos, um dos pontos mais importantes é a forma como ocupa a cidade”, acentua Eliane. 

SERVIÇO

Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua

Quando. De 20 (quinta-feira) e 30 (domingo) de junho.
Onde. Espaços públicos e privados
Quando. Programação gratuita e paga, entre R$ 30 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada)
Programação completa no site: portalbelohorizonte.com.br/fit