Tulio Araujo está ansioso. A “qualquer momento, o álbum duplo mais importante” da sua vida vai, literalmente, nascer, e, certamente, lhe “tomar o resto do ano inteiro”. Há aproximadamente 9 meses, ele “ensaia para estrear” na paternidade, e, logo de cara, com um casal de gêmeos: Amaro e Olívia. “Nem vou me arriscar a pensar em lançar nada porque serei outra pessoa ao virar pai. Quando vem filho, tudo muda”, especula.

Tulio é uma das atrações do Festival Tudo É Jazz, que acontece a partir desta sexta (19) em Belo Horizonte, e, se tudo der certo, sobe ao palco no domingo (21), com um tributo a Pixinguinha, em que será acompanhado por Evan Megaro ao piano, Rafael de Sousa no baixo acústico, Bruno Teixeira na flauta e, ainda, Bernardo Fabris no sax alto.

Aos 46 anos, o mineiro de Passos que rodou o mundo com seu instrumento tornou-se referência ao ampliar o leque de possibilidades para o pandeiro, sendo reverenciado por veículos especializados nos Estados Unidos e visitando, em turnê, países como Portugal, Espanha, França, Bélgica, Holanda e Inglaterra.

“Pandeiro e jazz já é uma loucura, ainda mais tocando choro sob a perspectiva da criatividade e improvisação”, avisa Tulio, que fez questão de recrutar um quarteto de jazz, “para mostrar ao público como o choro pode ser considerado o jazz brasileiro”. No repertório, clássicos de quem ele considera “o pai da música brasileira”, sem diminuir a importância e o pioneirismo de ícones como Tia Amélia, Chiquinha Gonzaga, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo.

Repertório 

A valsa “Rosa”, os choros “Lamentos”, “Vou Vivendo” e “Segura Ele” tomam a ribalta ao lado de “O Rasga”, que explicita a influência africana na música de Pixinguinha, e, “para todo mundo cantar junto”, a irresistível “Carinhoso”. “No jazz, o improviso é mais harmônico, e, no choro, é mais melódico, você vai ali assobiando, brincando, trocando em miúdos”, compara Tulio.

Ao ficar sabendo que a atual edição do Tudo É Jazz iria homenagear Pixinguinha – além do músico norte-americano Ray Charles –, Tulio ligou para a diretora do festival Suzana Martins, de quem é amigo há décadas, com uma ameaça nada velada. “Disse que se ela não me convidasse, nunca mais precisava conversar comigo”, diverte-se Tulio, que tem a imagem de Pixinguinha tatuada no braço, a quem ele equipara ao compositor Claude Debussy, ligado ao impressionismo.

“As composições de Pixinguinha são absurdas, tem uma doçura que você percebe na melodia”, sublinha. Ironicamente, a aproximação com o primeiro gênero brasileiro – e seu caldeirão de influências – aconteceu nos Estados Unidos, em São Francisco, onde Tulio, formado em Ciência da Computação pela PUC Minas, trabalhava no Google, gigante da tecnologia especializada em pesquisas.

Para pagar as contas, Tulio se “aventurava” no choro, e teve que “engolir a prepotência” ao se deparar com americanos que dominavam mais o gênero do que ele. “Passei vergonha, tomei bronca de americano, e, aí, fui estudar a linguagem com profundidade”, conta. O paralelo com o jazz, que ele já admirava, foi o ponto fulcral do encantamento. “Ambos são formas de expressão, resistência do povo preto. Pixinguinha era filho de pai e mãe-de-santo”, diz.

Origens

Tulio perdeu a mãe muito novo, com apenas 8 anos de idade. O pai, engenheiro elétrico, assim que se aposentou realizou o sonho de se tornar teólogo. Nesse ambiente, “fora do clichê de muitos músicos brasileiros”, a relação com o futuro ofício aconteceu mais tarde do que o usual. Morando em Vitória, no Espírito Santo, por volta dos 18 anos, Tulio se iniciou na capoeira e sofreu “o primeiro arrebatamento”. 

Descrito como “um movimento cultural” que o salvou, a capoeira desenvolvia “as linhagens do jogo, da luta e da música”, e os instrumentos logo o cativaram. “Principalmente o atabaque, que remonta muito à minha infância”, lembra o pandeirista.

Na casa da avó materna, em Passos, funcionava um terreiro de umbanda. As reminiscências trazem, ao ouvido de Tulio, “sons de tambores, o contato com a mão no couro”. Em 1997, ele aportou em BH para cursar faculdade, e, “como todos os adolescentes, ouvia o que as massas impunham”. “Pagode, samba, sertanejo”.

Mas ao ir ao lendário forró do Montanhês pela primeira vez, na região metropolitana da capital, teve acesso a uma descoberta que mudaria sua existência. “Perguntei ao DJ e ele até me zoou: ‘Como você vem ao forró e não conhece Jackson do Pandeiro?’”, recorda. “Assustado com aquele domínio rítmico” do músico paraibano, Tulio abandonou o violão que tocava sem muito compromisso para entrar de cabeça no ritmo do pandeiro.

Ao contrário da “grande maioria dos pandeiristas, oriundos do samba e do choro”, Tulio labutou durante quase 15 anos no forró, o que o permitiu se considerar “um forrozeiro”. Esse ciclo recebeu novo abalo quando, na casa da sogra, o músico encontrou o som único e diferenciado do saxofonista John Coltrane, mito do jazz. “Foi paixão à primeira vista”, resume.

Então estudando na renomada Bituca Universidade de Música Popular, em Barbacena, ele assistiu a um show de Milton Nascimento, patrono da instituição, a pouquíssimos metros de distância. Com a atenção fixada no ídolo, Tulio começou a “chorar copiosamente”, ciente do “privilégio daquela situação”. Ele contava com 26 anos. Ao ouvir o disco “Dois Mundos”, de Scott Feiner, em 2008, Tulio tomou a decisão.

Carreira

“Já tinha dentro de mim a vontade de fazer mais coisas com o pandeiro. Pensei: ‘é isso, mas faria diferente, com um jeito mais brasileiro’”. “Brincando”, Tulio foi “encontrando a própria voz”, o que já resultou em 6 álbuns, o mais recente do ano passado, cujo título, “Awerejê”, significa, em tupi-guarani, “convergência, fusão, mistura”.

Ali, além das autorais, Tulio explora temas de Herbie Hancock, John Coltrane, Ray Noble, e muitas outras pérolas. “O jazz é um estado de espírito, é você subir ao palco sem saber o que vai fazer, por conta da improvisação”, salienta Tulio, que recorre a uma definição emblemática de Hancock: “Jazz é como você dizer: ‘Eu te desafio’…”. 

O companheiro que ele escolheu para acompanhá-lo nessa estrada, o milenar e árabe pandeiro, na origem tocado só por mulheres nas regiões do Egito e da Turquia, aqui trazido pelos ciganos e abraçado pelos negros escravizados, congrega, além da “carga emocional”, uma característica peculiar.

“Raramente, na história da humanidade, você tem um instrumento com as três frequências juntas: grave, médio e agudo. Dá para tocar um baque de maracatu inteiro, uma escola de samba, um trio de forró, e num instrumento pequeno, que você leva para qualquer lugar. Com o pandeiro você pode sintetizar qualquer som”, arremata Tulio, guardando o universo na palma da mão. “No meio do sertão, você vai encontrar um senhorzinho tocando com o cotovelo. O pandeiro é realmente infinito”, do qual nem as “cinco encarnações” de Tulio dariam conta…

Serviço.

O quê. Tulio Araujo homenageia Pixinguinha no festival Tudo é Jazz

Quando. Neste domingo (21), às 17h45

Onde. Beco do Drummond, ao lado do Museu das Minas e do Metal (Praça da Liberdade, 680)

Quanto. Gratuito