Desempregado, o executivo de gravadora disparou para o diretor de jornalismo: “A Globo está perdendo dinheiro!”. A conversa folclórica aconteceu entre João Araújo (1935-2013) e Armando Nogueira (1927-2010), que, na ocasião, eram também parceiros de pelada, um dos divertimentos prediletos de ambos. Nogueira levou a sugestão para seus patrões na emissora carioca, e João Araújo conseguiu um novo emprego, ou, como metaforiza o jornalista Hugo Sukman, autor do livro “Som Livre: Uma Biografia do Ouvido Brasileiro”, que acaba de ser lançado, “ele põe o ovo em pé”.
“Em duas semanas, o João cria o projeto da Som Livre”, relembra Sukman. Nascia, assim, aquela que se consagraria como “a maior gravadora 100% brasileira”, unindo duas manias do país: música e telenovela. Essa ideia já estava no radar do produtor e diretor Daniel Filho quando, impressionado com o sucesso do folhetim “Beto Rockfeller” na TV Tupi, entre 1968 e 1969, ele discutiu com Boni, então manda-chuva da Globo, a possibilidade de trocar os cenários idílicos e remotos de novelas com origem em textos cubanos, que aconteciam em Agadir ou Viena, para “realidades mais contemporâneas”.
A solução encontrada foi firmar um contrato com a Philips de André Midani (1932-2019) que rendeu seis trilhas sob medida para a TV Globo, a primeira delas para “Véu de Noiva”, com um elenco musical tão estrelado quanto o dramatúrgico, que congregava Elis Regina, Roberto Menescal, Joyce e Wilson das Neves, dentre outros. O estouro, no entanto, veio na sequência, com “Irmãos Coragem”, que registrou quase 100 pontos de ibope, e cuja música de abertura, de Nonato Buzar e Paulinho Tapajós, ganhou a interpretação arrebatadora de Jair Rodrigues. Foi o estopim para a interjeição de João Araújo. Para não perder mais dinheiro, a Globo fundava, enfim, sua própria gravadora.
Império da Vênus Platinada
O ano de 1971 marca o início oficial da Som Livre, com a produção da trilha para “O Cafona”, seguida por sucessos de público e crítica como “O Bem Amado”, “Os Ossos do Barão” e “O Rebu”, com temas de Toquinho e Vinicius de Moraes, Paulo Sérgio e Marcos Valle e Raul Seixas e Paulo Coelho, respectivamente. Colocava-se em prática o objetivo de produzir “música brasileira para histórias brasileiras”, sublinha Sukman. Uma pequena amostra desse caldeirão já havia sido dada com o programa “Som Livre Exportação”, que estreou no final de 1970. Se a ambição de levar a música nacional para o planeta não funcionou, internamente a empreitada “obteve o seu êxito”.
Em contraposição à segmentação das atrações musicais na TV Record, que dividia bossa nova, samba e Jovem Guarda, o “Som Livre Exportação”, que chegou a ter Ivan Lins e Elis Regina como apresentadores, abria as portas para “todas as tribos”, e conseguiu levar Chico Buarque, que nunca tinha pisado na Globo pelo histórico de apoio da emissora ao regime militar, a aparecer pela primeira vez na telinha da “Vênus Platinada”, apelido que prenunciava o império televisivo em construção. Exilado, Caetano Veloso também recebeu autorização dos militares para cantar no programa, esbarrando-se nos corredores com Waldick Soriano, Clementina de Jesus e Toquinho.
“A Som Livre abraça todos os segmentos da música brasileira e os trata de igual para igual”, assinala Sukman. Segundo ele, “por estar ligada a um grupo de comunicação”, o primeiro efeito da gravadora no mercado foi “multiplicar as vendas”. “O patamar subiu de uma hora para outra”. O conforto propiciado pela retaguarda televisiva permitiu certos luxos, como, por exemplo, dar o pontapé inicial com um LP do pianista Osmar Milito, “porque o João Araújo e o Boni gostavam dele”, exemplifica Sukman. “Era uma época romântica da indústria fonográfica, os dois nunca despacharam no escritório, sempre no Antonio’s”, completa o jornalista, em referência ao histórico bar no Leblon, que, ironicamente, fechou as portas quando “a digitalização começava a dar as cartas”.
Algoritmos na ordem do dia
Sempre atenta aos sinais, a Som Livre “é a primeira a perceber esse novo momento, em que a gravadora não vende mais música, mas se torna sócia dos artistas na construção de carreira e de repertório”, pontua Sukman. A principal representante dessa era “que está em curso, com uma mudança mundial da tecnologia”, é a sertaneja Marília Mendonça (1995-2021), que, mesmo após a trágica morte em uma queda de avião, segue batendo recordes de vendagem na gravadora, atualmente detentora da maior parte do catálogo do chamado sertanejo universitário, com uma profusão de hits.
Sukman tece paralelos entre as mortes de Marília e de Rita Lee (1947-2023) com a venda para a multinacional Sony, em 2021, justamente quando a Som Livre chegou a meio século de existência. “Nessa fase em que os algoritmos têm um impacto decisivo, passou a não fazer muito sentido, estrategicamente, manter uma gravadora dentro de um grupo de comunicação, embora ela ainda desse lucro. A perda de sua primeira e da última ‘rainha’, em termos de vendagem, e a aquisição pela Sony são o que chamo, em um capítulo do livro, de fins de ciclo pelos quais a gravadora passou”, salienta Sukman.
Da rainha do rock à rainha dos baixinhos, passando pela sofrência
Depois de fracassar na Philips e muito antes de Marília Mendonça se consagrar como a “Rainha da Sofrência”, quem reinou nos estúdios da Som Livre foi a roqueira Rita Lee, com os cabelos tão afogueados quanto sua própria personalidade. Foi na gravadora que ela construiu toda a carreira solo e lançou sucessos atemporais, do porte de “Agora Só Falta Você”, “Ovelha Negra”, “Coisas da Vida”, “Doce Vampiro”, “Mania de Você” e “Lança Perfume”, graças a um “compromisso de liberdade criativa”. Djavan, que participou da trilha de “Gabriela” e foi inscrito, à revelia, no Festival Abertura, de 1975, com “Fato Consumado”, só não desistiu da carreira e voltou para Maceió porque João Araújo lhe arrumou um emprego na boate 706 e bancou o seu LP.
Hugo Sukman não tem dúvidas em definir o inaugural “A Voz, o Violão, a Música de Djavan”, de 1976, como “uma obra-prima”, que contou com a produção de Aloysio de Oliveira, arranjos do renomado maestro Edson Frederico e “praticamente toda a banda da Elis Regina, que era a melhor da época”. Outro êxito foi o lançamento de “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos, em 1972, eleito frequentemente um dos melhores discos da música brasileira. Foi Caetano Veloso quem ligou para João Araújo ao descobrir o grupo. O tropicalista também foi decisivo para o executivo compreender o talento do filho, Cazuza, ao cantar “Todo Amor Que Houver Nesta Vida” para um Canecão lotado.
Ao mesmo tempo em que investia em trabalhos de vanguarda, como “o disco de rock do Sidney Miller, o glam rock de Edy Star, e o icônico ‘Dracula I Love You’ da Tuca”, a Som Livre se acabava de faturar no mercado com as milhões de cópias vendidas pela apresentadora infantil Xuxa, rapidamente entronizada como a “Rainha dos Baixinhos”. A loira convivia com artistas etiquetados com o rótulo de “malditos” pelo comportamento dentro e fora dos palcos, como Luiz Melodia e Jards Macalé. Pessoalmente, Sukman destaca o LP ao vivo que reuniu Miúcha, Toquinho, Vinicius de Moraes e Tom Jobim, em 1977, e a trilha para o balé “O Grande Circo Místico”, de Edu Lobo e Chico Buarque, já definido por Aldir Blanc como “o disco mais bonito do século”.
Serviço.
“Som Livre: Uma Biografia do Ouvido Brasileiro”, de Hugo Sukman
Editora: Globo Livros; 238 páginas; a partir de R$45,00