A primeira cena após os créditos iniciais de “Cazuza: Boas Novas”, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas, já oferece as credenciais do documentário: Nilo Romero, que foi baixista de Cazuza e assina a direção ao lado de Roberto Moret, compartilha imagens do casamento de George Israel (ex-Kid Abelha) em que o autor de “O Tempo Não Para”, já bastante magro por conta da Aids, se diverte à beça na festa. 

É essa imagem que o filme quer perpetuar: um artista cheio de amor e energia que aproveitou até o último instante de sua vida, encerrada precocemente em 7 de julho de 1990, quando tinha 32 anos, no auge de sua criatividade musical. Esse fio condutor é amparado por muitas imagens caseiras, que, mesmo com qualidade precária, cumprem o papel de mostrar um lado divertido e mais íntimo de Cazuza.

Romero faz o papel de mestre de cerimônias, conduzindo as conversas com pessoas que conviveram com o cantor, presentes principalmente nos últimos momentos de vida dele. Há outras entrevistas emprestadas da TV, sendo a mais importante a que ele concedeu para Marília Gabriela, quando ainda escondia o fato de ser soropositivo (numa época ainda de grande preconceito em relação à doença) e fala da morte.

Cazuza passou longas temporadas num hospital em Boston, nos Estados Unidos, sempre ao lado da mãe Lucinha Araújo, em busca de tratamentos modernos. Numa dessas passagens, quase veio a falecer. Por lá compôs, entre outras, a autobiográfica “Boas Novas”, música que dá título ao documentário. Num trecho lembrado pela apresentadora, ele canta “Senhoras e senhores/ boas novas/ eu vi a cara da morte e ela estava viva”.

Com grande naturalidade, ele compara a visão da morte como um “gozo, um shot de heroína, um prazer total”. Neste momento vem a frase-síntese do filme: “Não é que eu tenha mais medo de morrer, mas eu gosto tanto de estar vivo que seria um desperdício morrer”, observa. Esse pensamento de Cazuza está estampado nos depoimentos e nas imagens da última turnê.

Primeiro cotado para assumir o vocal da banda carioca Barão Vermelho, sendo o grande responsável por indicar Cazuza para a vaga, por sua voz mais pesada e gritada, Leo Jaime relata que percebeu, durante os shows de “Ideologia”, “um artista no melhor de suas expressões”, num retrato bem diferente dos que esperavam alguém decadente, arrastando-se no palco.

“Ele sabia exatamente onde estava a luz, como emitiria a voz dele, estava com muita potência vocal. Estava gritando menos e cantando mais. Muito afinado. Tinha uma consciência corporal e cênica. Foi um trabalho do Ney (Matogrosso, diretor do show) com ele, evidentemente. Menos é mais, mas dizer isso para Cazuza era difícil, porque ele era o excesso. (No palco) Ele estava segurando para dar um chute na hora certa”, destaca Jaime.

“Boas Novas” encampa essa fronteira entre vida e morte, sem se preocupar em fazer uma biografia ampla e sensacionalista (pouco se fala de seus amores, por exemplo). Fala do início no Barão, mas não se estende muito – o guitarrista Roberto Frejat conta que ficou anos sem falar com ele, pois Cazuza saiu quando o grupo estava prestes a lançar um novo disco. O filme opta por se concentrar nesse instante de grande intensidade ao final da vida. 

Apesar de não fugir de um documentário tradicional, com talking heads (entrevistados sentados e mostrados acima da cintura) e poucos recursos gráficos ou de edição, o filme de Romero e Moret emociona por mostrar um artista que, para gravar o seu derradeiro disco, foi para o estúdio de cadeira de rodas e quase desmaiou ao cantar todas as músicas, não desperdiçando os últimos fôlegos de vida.