Lançado neste ano, “Triste Entrópico” não é apenas um álbum denso, que explora tanto camadas e texturas instrumentais quanto recursos linguísticos e intertextualidades. É também a coroação de um ciclo iniciado há 10 anos por seu criador, Makely Ka, músico piauiense radicado em Minas há um bom tempo. 

“Foi um percurso de fato”, estabelece o artista, lembrando que o novo disco é mais uma reverberação de uma viagem realizada por ele em 2012, quando percorreu, em uma bicicleta, cerca de 1.680 km, sobretudo nas regiões Norte e Noroeste de Minas Gerais, chegando também à Bahia – no rastro das pegadas fictícias de Riobaldo, personagem central de “Grande Sertão: Veredas”, obra fundamental de João Guimarães Rosa. 

“Essa travessia implicou diversos desdobramentos no meu trabalho e na minha vida”, reconhece, citando este “Triste Entrópico”, que encerra uma trilogia iniciada em 2014 com o disco “Cavalo Motor”. Entre um e outro, o músico concebeu também “Rio Aberto”, um trabalho instrumental lançado em 2021, que explora o próprio virtuosismo como violeiro. E não foi só.

“Inicialmente, o material que recolhi nessa viagem de três meses ia ser usado em um projeto só. Mas aquela foi uma experiência tão forte que acabou sendo inspiração para esses três registros fonográficos, mais um livro, vários artigos, exposição fotográfica e um documentário”, descreve, acrescentando que, ao longo da última década, voltou praticamente todos os anos a alguns daqueles destinos. “Eu conheci pessoas, fiz amigos e acabei me envolvendo com essa região do Norte e Noroeste mineiro”, aponta. 

Makely classifica “Triste Entrópico” como seu trabalho mais arrojado, com muitas camadas de som e de sentido, mas sem perder o pé no chão. “Eu costumo dizer que são três camadas de arranjos, começando pelos instrumentos de base – dois violões, percussão e contrabaixo –, depois os naipes de metais ou cordas e, por fim, as paisagens sonoras”, explica. “Já as letras têm muitas intertextualidades e citam outras obras da música brasileira, algumas mais conhecidas, outras menos”, aponta. 

O trabalho, claro, conversa também com os projetos que o sucederam. “Enfim, ele acaba sendo um resultado deles. Em comum com o primeiro, tem o fato de ser também um disco de canção. Com o segundo, há relação está nessa elaboração instrumental, do ponto de vista harmônico e melódico”, assinala.

Parcerias e homenagens 

Ainda que esteja mais especificamente ligado a esse ciclo iniciado há dez anos, Makely Ka reflete como “Triste Entrópico” se relaciona e é resultado, de maneira mais ampla, de seus vinte anos de carreira na música.

“Os meus parceiros sempre me influenciaram muito e, de alguma maneira, isso aparece agora”, examina, lembrando de trocas que teve desde o início de sua trajetória artística, como com Kristoff Silva e Pablo Castro – os três estiveram juntos em “A outra cidade”, em 2003.

“Depois disso, tive muitos outros parceiros que acabaram me influenciando muito também, porque sou autodidata, mas, quando componho com alguém, absorvo muito da musicalidade dessa pessoa. Caso do Chico Saraiva, que é um superviolonista com quem já trabalhei, do Guinga, um parceiro recente que mudou minha forma de tocar violão, ou do Lô Borges, uma figura do Clube da Esquina com quem já tive o prazer de gravar um álbum. O Tabajara Belo e o Gustavo Souza, que estão nesse disco, são outros exemplos”, aponta. 

Manifestos

Produzido durante a pandemia da Covid-19, no governo de Jair Bolsonaro, “Triste Entrópico” aborda uma série de questões que estiveram em relevo nesse período, que, no disco, ganham uma roupagem polifônica, evitando que as letras soem datadas.

“A primeira música, ‘Vento Vivo’, inclusive, é uma referência ao ar, pensando ao mesmo tempo em tanta gente que morreu sufocada nessa época quanto nessa analogia de que, quem está enclausurado, precisa de ar. É uma música que veio como uma epifania quando eu e a minha mulher, que é bailarina, estávamos presos em um apartamento (durante a fase mais grave da emergência sanitária)”, explica, ponderando que o sufocamento segue funcionando como uma boa metáfora para outros tantos temas contemporâneos, como o aquecimento global e as queimadas. Ele ainda acresce que, para a composição, buscou referências em mitologias de diversas civilizações – “que, em comum, versam sobre os ventos, sobre esse sopro divino, esse ente que está em todo lugar e ninguém vê…”.

Já na faixa “Ex-Extintos”, Makely saúda etnias indígenas que viveram no território onde, hoje, se localiza o Estado de Minas Gerais. “São povos que nos ensinam a como sobreviver, porque eles estão resistindo a uma sociedade que está, há muito tempo, os caçando, dizimando, alvejando”, critica.

Pequeno produtor orgânico

Uma questão cara ao artista – que se identifica como um “pequeno produtor de música orgânica” –, o tema do agronegócio aparece em duas faixas do disco, “Regresso ao agreste” e “Eu acho é pouco”.

Apresentação de Makely Ka no Cultura Livre 2023 | Foto: Nadja Kouchi

“Como me relacionei muito com as pequenas comunidades, fui percebendo que onde o agro chega a cultura popular começa a arrefecer, a minguar, porque, quando o agro chega com suas monoculturas, comprando terras, espalhando agrotóxico, essas populações muitas vezes são empurradas para fora e precisam migrar. E, então, a tendência é que, naquela região, para além da monocultura agrícola, se institua uma monocultura musical: o agropop, que eu nem chamo mais de sertanejo”, reclama.

Makely pontua que, para prosperar, esse tipo de sistema agrícola precisa recorrer aos agrotóxicos, o que, na música, compara com “o jabá, a compra de pequenas estações de rádio, as fazendas de likes e de streams” – ou seja, recursos que vão gerar um interesse artificial visando influenciar o gosto popular.

Ele prossegue com o raciocínio refletindo sobre os efeitos nocivos do fenômeno. “O problema dessa lógica da monocultura é que ela vai na contramão do que é saudável em toda manifestação humana, onde a tendência é a diversidade, que dialoga com a diversidade natural. Quando você vai a uma comunidade tradicional, nota que eles plantam de tudo. Eles não plantam só capim ou só arroz, porque eles precisam de variedade, porque o nosso corpo precisa de diversas fontes de nutrientes, vitaminas, etc. Quando falamos de cultura, é a mesma coisa. Afinal, nenhuma pessoa saudável quer ouvir a mesma música o tempo inteiro”, reflete.

Circulação e novos projetos

Makely Ka já vem circulando com o show “Triste Entrópico” em formato solo e, para os próximos meses, planeja levá-lo para São Paulo. “Gravamos um especial na Rede Minas, que deve ser exibido nas próximas semanas, que deve vir como uma ‘palinha’ do que vai ser esse show”, indica. Ele ainda reconhece ser difícil realizar apresentações com a banda completa. O álbum, afinal, conta com as participações de Ná Ozzetti, Toninho Ferragutti, Antônio Loureiro e Tabajara Belo, além de instrumentistas como Mário Séve, Yuri Vellasco, Camila Rocha, Felipe José e Marcelo Chiaretti.

“Além disso, já estou com outros projetos, porque quem vive com arte e cultura não pode parar”, diz. Entre os novos trabalhos, o músico deve lançar um novo disco autoral ao mesmo tempo que vem produzindo o EP da cantora Luísa Penido – que faz os backing vocals da faixa “Feira de Araçuaí” em “Triste Entrópico”.

Estou com um livro, com outro disco já, porque esse disco como estou gravando há muitos anos, eu já vinha pensando em outras coisas. Estou produzindo o disco de uma cantora agora, estou gravando outro disco, de violões e voz. Outra novidade em vista é o livro “Manual do Pequeno Produtor de Música Orgânica”. “A gente entrando em um momento de Inteligência Artificial… Eu sou cada vez mais um defensor da música orgânica, da música feita por pessoas, que valoriza a diversidade, a música feita por pequenos produtores, por pequenos criadores”, garante.

SERVIÇO:
O quê. Álbum ‘Triste Entrópico’, de Makely Ka
Quando. Já disponível 
Onde. Nas principais plataformas de áudio, exceto Spotify
Quanto. Gratuito