Do pós-impressionismo do francês Paul Cézanne e seu emblemático “Banquete de Maçãs” (1895) ao cubismo do espanhol Pablo Picasso: as telas de “natureza morta”, embora tenham ganhado notoriedade no século XVI, remontam aos tempos antigos e perduraram por milênios, possuindo exemplares nas mais distintas vanguardas criativas. O tema é tão recorrente nas artes que parece corroborar para a ideia de que os alimentos, mais que apenas saciar a fome, provocam também, e nas mais distintas épocas, um desejo de contemplação — e, talvez, de ostentação. Desejo que, agora, em um mundo que lida com a onipresença das redes sociais, ganha proporções e significados inéditos. 

Tanto que, hoje, não seria arriscado dizer que boa parte das pessoas já presenciou — ou protagonizou — a seguinte cena, que se repete em cafés, bistrôs e restaurantes: o prato chega à mesa e, logo, quem está em volta se debruça sobre ele, mas, em vez dos talheres, com o smartphone à mão, em riste, procurando melhores ângulos e enfileirando registros. Quando finalmente se serve, pode ser que a comida, inclusive, já não estava na temperatura ideal para consumo.

Em alguns casos — e é fácil imaginar a cena —, o prazer parece estar mais associado ao ato de fazer fotos e vídeos dos pratos que chegavam do que propriamente comê-los. Tanto que, na contramão dos cliques abundantes, as garfadas podem ser mínimas. Os restos? Bom, estes podem ficar enfileirados no canto da mesa, longe o bastante para não estragar a foto da sobremesa.

A tela 'The Basket of Apples' (1893), do francês Paul Cezanne | Crédito: Helen Birch Bartlett Memorial Collection/Divulgação
A tela 'The Basket of Apples' (1893), do francês Paul Cezanne | Crédito: Helen Birch Bartlett Memorial Collection/Divulgação

Neste ponto, é importante se distanciar dos sedutores julgamentos morais — típicos de quando estamos diante de algo que nos causa estranhamento — para, então, ir ao que interessa: ainda que o apelo decorativo dos alimentos seja antigo, e muito antigo, será que o uso constante e massivo das redes sociais potencializaram essa característica, alterando a nossa relação com a comida e, consequentemente, a gastronomia? Será que a aparência dos alimentos pode se tornar algo mais importante que o sabor para alguns consumidores?

Antes de se deter sobre a questão, o gastrônomo Eduardo Maya lembra: “Tem aquele velho dito popular de que a gente ‘come com os olhos’. E é claro que essa máxima tem sua razão de ser”. Ele prossegue situando que, ao longo do tempo, além da representação artística de alimentos, geralmente in natura, os pratos foram ganhando adornos, cumprindo também funções decorativas. Ele cita o francês Marie-Antoine Carême, que viveu entre os anos de 1783 e 1833, como um nome incontornável ao se falar desses preparos com apelo cenográfico. “Ele era considerado o ‘cozinheiro dos reis’ e é uma espécie de ‘rei da cozinha’, no campo da confeitaria — que é uma ciência quase exata, que tradicionalmente têm essa preocupação mais acentuada com a aparência”, avalia.

Curador e criador de diversos projetos gastronômicos, como a Feirinha Aproxima, Maya ainda menciona que, mesmo quando o assunto são os pratos salgados, é possível encontrar, ao longo da história, culturas que já valorizavam o apelo visual, buscando criar composições com um quê de artísticas. “Na China e no Vietnã, por exemplo, temos registros nesse sentido”, comenta, para imediatamente reconhecer que, hoje, em alguns segmentos, essa preocupação se tornou mais presente. “Mas isso não significa que estamos fazendo comida ‘só para ver’”, pontua.

Explorando possibilidades

O chef André de Melo segue por um raciocínio semelhante. “A confeitaria sempre teve um apelo estético maior que a culinária salgada — e, por isso, para mim, serviu de inspiração quando esse cuidado com a aparência, com uma montagem mais artística, chegou também nos preparos salgados”, argumenta. Ele prossegue dizendo ser comum, atualmente, que os profissionais da cozinha busquem explorar possibilidades sensoriais mais amplas.

Retrato de Marie-Antoine Carême, considerado o 'chef dos reis' na confeitaria | Crédito: Bibliothèque Sainte-Geneviève/Divulgação
Retrato de Marie-Antoine Carême, considerado o 'chef dos reis' na confeitaria | Crédito: Bibliothèque Sainte-Geneviève/Divulgação

“Vem daí uma preocupação maior com a harmonia do que é apresentado, com o uso de cores vibrantes, com um ordenamento dos insumos ou culminando na aposta de um desenho mais minimalista, que vem de uma tradição oriental”, descreve, dizendo que tudo isso vai criar uma experiência visual que complementa o sabor, além de funcionar como uma assinatura do seu criador.

Empresário do ramo da gastronomia, Melo ainda pondera não ver um antagonismo entre a comida mais tradicional, com menos cuidado com a apresentação, e os pratos mais elaborados, geralmente mais atentos ao aspecto da visualidade. “Há momentos para consumir um, há momentos para consumir o outro”, reflete, admitindo que, no caso dos guisados, dos preparos que levam muito tempo, que têm muitas camadas de sabor e do ‘confort food’, o foco é sobretudo o sabor, de forma que a apresentação vai importa muito pouco.

Apetitoso, bem-apresentado ou ‘instagramável’?

A esta altura, é bem-vinda a diferenciação entre o que seria um prato com boa aparência, um bem-apresentado e um “instagramável” proposta por Maria Eulália Araújo, sócia-fundadora e diretora de operações do concurso Comida di Buteco. “Uma rabada ou uma dobradinha, por exemplo, dificilmente ficarão bem em uma foto. Mas esses pratos podem, sim, parecer apetitosos”, assinala, defendendo que toda comida pode ter uma boa aparência, mesmo que não rendam boas fotos facilmente.

Apresentação do petisco Boi Bandido, do Espetinhos do Paulão, eleito o melhor boteco de BH pelo Comida di Buteco 2024 | Crédito: Alexandre Homem/Divulgação
Apresentação do petisco Boi Bandido, do Espetinhos do Paulão, eleito o melhor boteco de BH pelo Comida di Buteco 2024 | Crédito: Alexandre Homem/Divulgação

A apresentação, por outro lado, defende ela, tem a ver com a montagem e disposição dos elementos que compõem o prato, sendo mais presente sobretudo em um tipo de cozinha mais elaborada — geralmente chamada de “alta gastronomia”. Ela ainda alerta que o investimento excessivo neste quesito tende a ser arriscado. “É uma faca de dois gumes, porque é uma coisa que aumenta a expectativa e, por outro lado, se o sabor não estiver a altura, pode gerar frustração. E todo mundo sabe como é ruim se decepcionar com um prato, ter a sensação de ter pago caro de mais em algo que não entrega sabor”, examina. 

Por fim, caracterizando o que seria a “comida para postar”, Eulália cita a presença de adornos e efeitos visuais que considera excessivos, espetaculosos e até nocivos para o fazer gastronômico. “Me preocupa muito essa espetacularização da comida, porque é uma experiência que não deveria ser levada para esse lugar. Me parece ruim que a gente reduza a comida, algo tão importante em nossas vidas, a uma foto”, critica. “Então, quando vejo esse monte de gente badalada de internet postando pratos mirabolantes, fico pensando se elas têm, de fato, compromisso com a gastronomia ou se só estão ali para ter likes nos seus respectivos perfis de Instagram, TikTok ou o que seja”, complementa.

Experiência pretensiosa

Eduardo Maya concorda. “Particularmente, acho que algumas coisas estão exageradas. Caso de jantares de quatro ou cinco horas, com muita pirotecnia, muitos efeitos visuais — como fumaça e espuma que não acrescentam em termos de sabor —, mas que, no fim, não entrega tudo que promete e acaba tornando a experiência pretensiosa demais e, por isso, chata, enfadonha”, critica, ecoando apontamentos de Bruno Verjus, melhor chef francês na lista dos 50 Best, que criticou excessos em entrevista à revista Veja na semana passada.

“Tem muito black-tie e refeições de três horas em que o pobre cliente vira quase um prisioneiro”, registra Verjus na publicação, inteirando sentir-se especialmente orgulhoso e contente quando vê pessoas “esquecendo o celular e o relógio” para apreciar a sua comida.

Por uma comida divertida

Sobre o uso de artifícios meramente visuais na montagem dos pratos, o chef André de Melo contemporiza. “Acho que é algo que tem a ver com a tentativa de provocar os sentidos de uma maneira mais dilatada — e hoje temos mais recursos para isso, para causar surpresa e criar algo inédito”, analisa, sublinhando que esse ineditismo pode, mesmo que indiretamente, favorecer a experiência gastronômica. “Eu acho que a comida deve ser divertida, precisa ter liberdade para brincar, porque, assim, conseguimos desarmar um pouco a pessoa, que, então, vai se envolver com a comida em outra escala”, reflete.

Croquete de pato com aioli preparado pelos chefs da Bravo Catering, empresa da qual o chef André de Melo é um dos sócios | Crédito: Reprodução/Instagram @victorschwaner
Croquete de pato com aioli preparado pelos chefs da Bravo Catering, empresa da qual o chef André de Melo é um dos sócios | Crédito: Reprodução/Instagram @victorschwaner

“A gente passou a consumir muito com os olhos nas redes sociais, que são uma ferramenta de marketing para os restaurantes, atraindo clientes por meio de fotos bonitas, apetitosas”, prossegue Melo, que pondera: “Precisamos separar o joio do trigo, pois uma coisa é a foto na internet, outra é o sabor”. 

“Podemos fazer uma analogia com a maneira como as pessoas escolhem muito bem o que vão colocar nas suas redes, onde parecem estar sempre felizes, sempre vivendo momentos especiais, quando, na verdade, podem estar passando por alguma situação difícil. Do mesmo modo, a comida feita para ser fotografada pode enganar, pode ter muita maquiagem e parecer melhor do que é de fato”, avalia, lembrando já ter visto restaurantes se tornarem badalados por terem pratos “instagramáveis”, mas não por muito tempo. “Muitos viveram um boom e depois fecharam, justamente porque não entregavam nada em termos de sabor”, conclui.

Relação com a comida não mudou, ainda

É a partir da constatação de que estabelecimentos que investiram apenas na aparência de seus produtos não prosperaram que o chef André Melo sustenta que, não, as redes sociais não alteraram práticas do fazer gastronômico. Ou, pelo menos, ainda não. “A verdade é que o sabor segue sendo o elemento mais importante para a maioria das pessoas, mesmo que a gente saiba que há quem se divirta mais fazendo posts. Mas também não é algo que censuro, mas observo com atenção”, sinaliza. 

Do que depender de Maria Eulália Araújo, aliás, o Comida di Buteco estará nas trincheiras contra essa dinâmica. “A gente conversa muito sobre isso internamente. Tem até quem fale que a gente poderia explorar mais as fotos dos pratos, mas este não é e nunca foi o nosso objetivo. No concurso, queremos que as pessoas tenham a experiência de estar no estabelecimento, não nas redes sociais dele”, comenta.

Prato japonês Raisu Karê, apresentado na última edição da Feirinha Aproxima | Crédito: Reprodução/Instagram @projetoaproxima
Prato japonês Raisu Karê, apresentado na última edição da Feirinha Aproxima | Crédito: Reprodução/Instagram @projetoaproxima

Eduardo Maya, por sua vez, garante que, nos eventos em que atua como curador, publicações em mídias digitais não são um norte para a escolha dos participantes. “Nesse sentido, acho que a maioria dos eventos sérios se blinda dessa influência, priorizando o sabor”, estabelece.