Que pessoas com deficiência devem ter acesso irrestrito à cultura, não há dúvidas. Tanto a legislação brasileira quanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelecem que todo ser humano têm direito a participar e integrar expressões artísticas em igualdade de oportunidades.
Além disso, o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, instituído pela Lei Nº 11.133 e celebrado no próximo sábado, 21 de setembro, marca a mobilização pela inclusão absoluta das pessoas com deficiência na sociedade, inclusive nas artes.
Mas como diz a expressão popular, “na teoria, a prática é outra.” Pessoas com deficiência, artistas ou não, declaram que a inclusão plena ainda está longe de se tornar realidade, seja pelo desinteresse mercadológico, pelas faltas de oportunidades ou pelas recorrentes falhas encontradas em espaços que se vendem como acessíveis.
Apesar de reconhecerem os desafios, elas também celebram alguns avanços. A realização de atividades pensadas para atender suas necessidades específicas e a obrigatoriedade de recursos de acessibilidade em editais de cultura são exemplos disso.
“Ser minoria em um mundo onde se preza pela ‘normalidade’ é um desafio, mas precisamos ser vistos pela sociedade para lembrarem que consumimos arte e cultura”, resume Ademar Alves Junior. Ele é curador do Festival Acessa, que segue em Belo Horizonte até o dia 29 de setembro, apresentando mais de 30 atividades multiculturais com foco na acessibilidade para pessoas com e sem deficiência.
“Como pessoa surda, minha experiência me mostrou a importância da acessibilidade em todos os aspectos da vida, incluindo o acesso à cultura. A falta de recursos e de oportunidades muitas vezes limita a participação de pessoas surdas em eventos artísticos, o que é uma grande perda para todos nós”, aponta, em entrevista escrita.
O ator Ricardo Boaretto também compartilha do sentimento de Ademar. “A arte poderia ganhar novas significações dentro dos ambientes escolares, para que o conceito dela se tornasse mais abrangente quando nos tornássemos adultos”, aponta. Surdo, Boaretto encontrou no teatro um espaço para se expressar.
Ele está em cartaz no espetáculo bilíngue “Língua”, com atores ouvintes e surdos que interpretam o texto em português e na Língua Brasileira de Sinais (Libras). “Trabalhar neste espetáculo foi um marco e um desafio para mim. Me senti orgulhoso de participar desse processo e poder apresentar um produto final para o público”, descreve.
Na trama, Boareto interpreta um taxista surdo, que se vê em meio a um dilema durante a sua festa de aniversário. “Há uma cena, entre a mãe e filho, todo feito em Libras. Com isso, todos podem se sentir confortáveis em assistir ao espetáculo, porque não precisam ficar o tempo inteiro alternando o olhar entre a cena e o intérprete de Libras”, aponta o artista, que conversou com O TEMPO com o auxílio da intérprete Lorraine Mayer.
Diretor do espetáculo, Vinicius Arneiro reforça que, ao pensar no espetáculo, ele se interessou por “criar uma cena onde não houvesse separação formal entre as línguas.” “Um processo que mistura artistas surdos e ouvintes não é algo comum, não está posto. Cada etapa foi uma invenção. Foi necessário inventarmos meios de passar por um processo de estudos, leituras, improvisações e exercícios da forma adequada para todos”, afirma Arneiro.
Já para Dudu do Cavaco, foi a música que lhe abriu o caminho para as artes. Com Síndrome de Down, ele conta que, ainda muito novo, tomou gosto pelos sons que vinham dos instrumentos tocados pelos tios e primos. “Quando estou tocando, pego a minha emoção e jogo para o público. Hoje toco 11 instrumentos, e a música me ajuda muito a conhecer pessoas e fazer o que gosto”, afirma. Para ele, a arte se mostrou como uma “ferramenta de inclusão”, mas que ainda sente falta de “mais convites, oportunidades e espaços para se expressar.”
Ações de inclusão de equipamentos públicos e privados
Ações voltadas para a inclusão de pessoas com deficiência nas artes têm sido intensificadas por equipamentos de cultura, particulares e públicos. O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-BH), por exemplo, elaborou uma área batizada de Proximidade, que integra o programa Educativo CCBB e que busca aprofundar conexões sensoriais e cognitivas, de maneira a incluir pessoas de todos os perfis, independente de suas necessidades específicas.
“Dentre as nossas ações, estão as contações de histórias bilíngues, em português e em Libras. Também oferecemos kits sensoriais, que vêm com abafador sonoro e óculos escuros, para pessoas autistas. Nossas equipes também têm pessoas surdas, aptas para receber pessoas com deficiência desde a sua chegada”, afirma a coordenadora-geral do Educativo do CCBB-BH, Adriana Bertolucci.
A Fundação Clóvis Salgado, responsável pelo Palácio das Artes, também trabalha com ações nesse sentido. “Há dois anos e meio, temos a preocupação de tornar o Palácio das Artes acessível para todas as pessoas. Tratando-se, por exemplo, de acessibilidade física, temos rampas e elevadores por todo o espaço, além de assentos acessíveis no Cine Humberto Mauro, no Grande Teatro e no Teatro João Ceschiatti", conta o presidente da FCS, Sérgio Rodrigo Reis.
"Nossas equipes sabem Libras, para que o atendimento seja eficiente em todas as etapas e promovemos uma sessão chamada de Azul, destinada a pessoas com autismo. No nosso streaming, o Cine Humberto Mais, há mais de 60 filmes com acessibilidade e para pessoas com deficiência visual, há mapas táteis e traduções para braile”, elenca.
Já a Casa Fiat ressaltou que, desde que foi inaugurada, em 2006, atua para construir um espaço acessível para todos os públicos, com programação gratuita. “Ao longo desses 18 anos, desenvolvemos instrumentos e estratégias de acessibilidade que servem como uma ponte entre a arte e as pessoas, eliminando as barreiras sociais que separam esses universos", aponta a gestora cultural da Casa Fiat de Cultura, Ana Vilela.
"A cada exposição realizada são oferecidas visitas mediadas pela equipe do Programa Educativo, estimulando as múltiplas possibilidades de reflexão, particulares a cada mostra. Além disso, a expografia das exposições é adaptada, pensando em facilitar o acesso de cadeirantes, crianças e pessoas com estatura reduzida”, complementa, Ana Vilela.
O que dizem o Estado e a prefeitura
Em relação a ações que competem ao Estado, a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais (Secult-MG) informou que promove políticas públicas que garantem o acesso e a inclusão das pessoas com deficiência nos programas e editais da pasta.
“A Lei Paulo Gustavo, por exemplo, previa, obrigatoriamente, 20% de cotas para pessoas negras e 10% para pessoas indígenas nos 10 editais. Em Minas Gerais, esse percentual foi ampliado para outros grupos sociais e a categoria PcD contou com cota de 5% nos editais. A mesma política foi aplicada nos editais do Fundo Estadual de Cultura lançados recentemente”, destacou, por meio de nota.
Informou ainda que realiza ações de acessibilidade e de inclusão em museus e equipamentos culturais para pessoas com deficiência, como no Museu Mineiro, em Belo Horizonte, QR codes dão acesso, em libras, a parte dos conteúdos de sua exposição de longa duração “Minas das Artes, Histórias Gerais”.
Ressaltou ainda que a Biblioteca Pública Estadual mantém, desde 21 de janeiro de 1965, o seu setor Braile, referência nacional para o atendimento das pessoas cegas e com baixa visão. "Em 2024, 2.794 leitores com deficiência visual foram atendidos por meio dos serviços prestados pelo Setor Braile até o mês de agosto, e foram realizados um total de 716 empréstimos", enfatizou.
A Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e da Fundação Municipal de Cultura, informou que tem ampliado continuamente a discussão e seu “compromisso com acessibilidade na cultura da cidade.” “Essa pauta começa a fazer parte de todos os programas e projetos, de maneira orgânica, sistêmica e continuada”, salientou, por meio de nota.
Dentre as incitavas elaboradas para atender pessoas com deficiência a PBH destacou a inserção de medidas de acessibilidade nas atividades culturais próprias, assim como a realização de atividades culturais voltadas para públicos específicos; ações de capacitação e formação; ações de protagonismo autoral, criativo e sociocultural das pessoas com deficiência e estímulo e exigência de ações de acessibilidade nos editais de fomento cultural.
A prefeitura também destacou que museus públicos municipais oferecem recursos que potencializam a visita das Pessoas com Deficiência, elencando ações da Casa do Baile, Museu Casa Kubitschek, Museu de Arte da Pampulha, Museu da Moda, Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte e Museu Histórico Abílio Barreto.
Apontaram ainda que os editais de fomento à cultura desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Cultura exigem que todo projeto inscrito deve propor, ao menos, uma medida e/ou ação de acessibilidade física, atitudinal e/ou comunicacional compatíveis com o objeto proposto.
"Inclui-se aqui recursos de acessibilidade para permitir o acesso de pessoas com mobilidade reduzida; recursos para permitir o acesso de pessoas com deficiência intelectual, auditiva ou visual ao conteúdo dos produtos culturais gerados pelo projeto; ou mesmo a contratação de colaboradores sensibilizados e capacitados para o atendimento de visitantes e usuários com diferentes deficiências. Além disso, a capacidade de o projeto prover acessibilidade também é um critério de avaliação da proposta", descreveram em nota.