"Bocaina" é um exercício de linguagem que irá exigir maior atenção do espectador. Em cartaz no Belas Artes, o filme dirigido por Fellipe Barbosa e Ana Flávia Cavalcanti já nos impõe, desde o início, um grande desafio ao abolir por completo o diálogo entre os personagens, que se resumem a três apenas - duas mulheres e um homem.
As duas mulheres trabalham dia após dia num lugar aparentemente isolado, cercado de muito verde. Há uma relação entre elas, mas não sabemos direito qual é. Há uma repetição em suas ações que só será quebrada com a chegada de um desconhecido, que é acolhido por estar doente.
A doença pode ser simbólica de um mal-estar, pois as coisas começam a sair de seu eixo com essa presença masculina. É um artifício clássico do cinema: o estranho que promove um desajuste no lugar, podendo ser ele social ou psicológico. Mas "Bocaina" não para por aí, pois logo um ingrediente entra em ação, como se houvesse uma mudança temporal.
O homem parece estar no mesmo estado de antes. As mulheres, não. O trabalho dedicado para o funcionamento da casa dá lugar a uma certa distração provocada por aparelhos - um televisor e um celular, entre eles. Seria, portanto, uma crítica a esses tempos atravessados por alguns males da humanidade atual?
Ainda assim, seria muito pouco para entendermos a complexidade de proposições de "Bocaina". Os minutos finais nos apontam mais uma leitura, ao colocarmos nessa balança uma dose de fantástico, quando o homem assume um outro papel, mais significativo para o estabelecimento de uma relação de afeto familiar com as duas mulheres.
Está aí, possivelmente, o grande exercício do filme, ao entendermos que a ausência de diálogos nos conduz, na verdade, para um terreno de memórias pontuadas por uma entidade que marca a jornada dessas duas mulheres. Desta forma, o título se justifica inteiramente, como um local que irá aprisioná-las durante todo um percurso temporal e sensorial.
É, para ficarmos nesse terreno da fantasmagoria, uma espécie de espaço mal-assombrado. Com a diferença de que o assombro é gerado pela visita de lembranças que põe as duas personagens num looping em realidade alternativa. É como a cantiga "A Velha a Fiar" que entoam, definida pelos especialistas como uma narrativas folclórica acumulativa.
Em determinado momento, surge um pai e duas filhas pequenas. Mas onde estaria a mãe? Seria a Natureza? Ou a casa-útero de onde elas não conseguem sair, por mais que haja estradas cruzando o caminho? Seria esse o lugar de volta da humanidade? Não seria exagero pensar que, neste mundo paralelo, o contato com a mãe se dá por uma vitrola, um dos poucos momentos de comunhão entre os protagonistas.