Um homem acorda assustado e descobre que está no meio de uma floresta de bambus. Ele olha para o lado e se depara com um cachorro. Com dificuldades, se levanta e percebe que está ferido. O homem sai correndo no meio da mata até que vai parar em uma praia onde encontra destroços de uma aeronave e várias pessoas machucadas e até mortas. É assim que ele constata que o avião em que estava caiu.

Era o voo 815 da Oceanic Air que fazia o trecho Sydney/Los Angeles. Foi assim que há exatos 20 anos, no dia 22 de setembro de 2004, começava uma das séries mais aclamadas da cultura pop, “Lost”. O enredo que mesclava drama, fantasia e ficção científica trazia a saga de 48 sobreviventes desse acidente aéreo após caírem numa misteriosa ilha do Oceano Pacífico. 

 

Passadas duas décadas de sua estreia, a produção idealizada por Jeffrey Lieber, J. J. Abrams e Damon Lindelof ainda causa impacto e acaba de chegar aos catálogos da Netflix e da Disney+ e também vai ganhar um documentário, “Getting Lost”, sobre a história da criação e dos bastidores de suas seis temporadas, previsto para estrear justamente neste domingo (22) nos Estados Unidos.

“‘Lost’ foi um divisor de águas. Ela elevou o nível das produções televisivas ao integrar um enredo profundo com mistérios complexos e personagens ricos, criando uma nova forma de se contar histórias. A série basicamente gerou o fenômeno dos ‘fandoms’ e incentivou discussões intensas nas redes sociais, muito antes da explosão do Twitter. Lembro que passava horas de madrugada no Orkut em fóruns de fãs teorizando sobre “o que era a Dharma?”, ou “o que era o urso polar?” ou ainda o clássico, “o que era a fumaça preta?”. Muitas perguntas sequer foram respondidas, mas valia a pena e tenho muita saudade dessa época. Além disso, ‘Lost’ foi pioneira na fusão entre ficção científica e drama de sobrevivência, influenciando diretamente o formato das séries atuais, especialmente no que diz respeito a narrativas não lineares e reviravoltas”, analisa Anderson Narciso, criador e editor chefe do portal Mix de Séries, que está há dez anos no ar.


Para ele, o grande sucesso da produção veio de uma combinação única de elementos: personagens cativantes, um mistério envolvente e um formato inovador. “A série soube balancear perfeitamente os momentos emocionais e os mistérios da ilha. Além disso, os ganchos no final de cada episódio mantinham o público sempre em expectativa. Outro fator foi o timing perfeito — a internet e os fóruns de discussão estavam em expansão, permitindo que o público debatesse teorias, conectando fãs do mundo inteiro”, comenta.


A jornalista, doutora em Ciências da Comunicação e editora do portal Escotilha, Maura Martins, também acredita que “Lost” foi um paradigma na história das narrativas televisivas, justamente pelo fato de permitir que, pela primeira vez, milhares de pessoas espalhadas pelo planeta pudessem acompanhar uma série ao mesmo tempo, com o uso da internet. “Isso se dava por meio de plataformas em que as pessoas baixavam os episódios assim que eles iam ao ar nos Estados Unidos, havendo também um esforço coletivo para produzir legendas. Assim, logo que o episódio ia ao ar, já estávamos assistindo a ele aqui no Brasil, por exemplo. É claro que isso hoje parece absolutamente normal e corriqueiro, mas é preciso lembrar que, em 2004, esse tipo de consumo midiático estava apenas começando”, defende Maura ressaltando um outro aspecto inovador. “Uma espécie de experiência coletiva, que depois Henry Jenkins (o americano é considerado um dos pesquisadores de mídia mais influentes da atualidade) chamaria de ‘Cultura da Convergência’ (inclusive, ele chega a tratar de ‘Lost’ neste livro): a série não era simplesmente assistida na TV. Ela exigia uma participação muito maior. Como a narrativa deixava muitos pontos em aberto, os espectadores uniam-se a partir de fóruns online para discutir os elementos que ficavam soltos propositalmente na narrativa, dando origem aos tantos mistérios que caracterizam ‘Lost’. É claro que histórias de mistério sempre existiram na TV, mas penso que ‘Lost’ foi marcante por proporcionar, pela primeira vez, que pessoas espalhadas pelo mundo se unissem formando uma espécie de inteligência coletiva para ir completando as peças que faltavam. Obviamente, nem todos que viam a série faziam isso. Mas os que fizeram tiveram uma experiência muito melhor e puderam testemunhar essa mudança de paradigma”, opina a especialista.


‘Lost in Lost’

Ao longo das seis temporadas, o público foi se habituando (ou não) com os números ‘amaldiçoados’ (4 - 8 - 15 - 16 - 23 - 42), as viagens no tempo malucas, a Iniciativa Dharma,  o “monstro” da Fumaça Preta, e tudo envolvendo os personagens mais emblemáticos como Jack (Matthew Fox), Kate (Evangeline Lilly), John Locke (Terry O'Quinn), Claire (Emilie de Ravin), Sawyer (Josh Holloway), Hugo (Jorge Garcia), Sayd (Naveen Andrews), entre outros. Até um brasileiro chegou a fazer parte do elenco quando Rodrigo Santoro interpretou o misterioso Paulo na terceira temporada. Recentemente, o ator postou uma foto em seu Instagram relembrando sua participação na série: “Fiquei feliz de saber que ‘Lost’ está disponível também na Netflix. Esse foi um trabalho muito importante pra mim e guardo boas recordações desses tempos em que morei no Havaí”.

 

 

A narrativa de “Lost” foi um dos pontos mais surpreendentes, tanto do lado positivo, quanto do negativo. Até entre os fãs tinha gente que brincava ficar ‘lost in lost’ (completamente perdido) com a história. Para o  criador e editor chefe do portal Mix de Séries,  Anderson Narciso, a coragem da série em desafiar as convenções narrativas da TV foi um dos aspectos que mais o cativaram. “Ela tinha uma estrutura única, com flashbacks, flashforwards e até flash-sideways (mostrando uma realidade paralela), desafiando o público a acompanhar cada nuance. Era confuso para quem assistia, acredito que para quem escrevia também. Mas talvez esse era o charme. Tentar juntar um quebra-cabeças que, anos depois, séries no streaming como ‘Dark’, ‘Manifest’, entre outras, se popularizaram fazendo o mesmo. Vale lembrar também que ‘Lost’ se aliou à profundidade filosófica e às perguntas existenciais que levantava, o que elevou a série a um patamar diferente. Também fiquei surpreso pela forma como a série lidou com temas universais como redenção, fé, destino e livre-arbítrio”, destaca.


Final decepcionante?

Por mais que boa parte dos 121 episódios totais de ‘Lost' tenham prendido a atenção de grande parte dos telespectadores, uma coisa é certa: muitas questões não foram explicadas. O seriado ainda dividiu a opinião dos fãs na última temporada com um final considerado aberto e até decepcionante para alguns. “O final de ‘Lost’ foi divisivo, sem dúvida. Pessoalmente, não diria que foi o mais decepcionante, mas entendo as críticas. Eu, por exemplo, adoro. Me emociono. E não, eles não estavam mortos o tempo todo. Na verdade, a série criou tantas expectativas e mistérios ao longo das temporadas que, para alguns, o desfecho não correspondeu ao nível de complexidade estabelecido. O que mais me decepcionou foi que algumas subtramas e mistérios ficaram sem uma resolução clara, o que deixou os fãs com a sensação de que certas partes da história foram negligenciadas”, comenta Anderson.


Já a doutora em comunicação Maura Martins revela que como não era muito fanática, não se lembra de ter se decepcionado totalmente, mas recorda que o desfecho ficou aquém das expectativas, como se tivesse buscado soluções fáceis para uma trama bastante complexa. “Penso que o grande desafio de ‘Lost’ é que era uma narrativa muito fragmentada, com muitos núcleos, personagens e tramas paralelas. Até por conta disso, funcionava como um jogo: quem quisesse jogar, tinha que ter um certo papel ativo de juntar as peças e tentar dar sentido a elas. Isso é muito interessante por um lado, mas também muito desafiador, pois corre o risco de a história ficar tão complexa a ponto de ninguém conseguir acompanhar. Não penso que chegou a esse ponto, mas, talvez, se eu fosse escrever ‘Lost’, cuidaria desse aspecto que, creio eu, pode levar ao desinteresse de alguns espectadores”, recomenda.

  

 

E mesmo após duas décadas, será que a série ainda conserva o seu frescor? Para o especialista em séries  Anderson Narciso a resposta é sim. “Ainda que a tecnologia e o estilo de produção tenham avançado, a essência de ‘Lost’ continua atual. Os temas universais e as questões emocionais que ela aborda permanecem relevantes. Além disso, a maneira como ‘Lost’ foi estruturada, com seus mistérios e reviravoltas, ainda é referência para muitas séries atuais. Muitos espectadores novos encontram na série uma experiência única, mesmo hoje em dia, o que comprova que seu impacto permanece vivo”, resume. 

 


Fãs celebram a série

Até 2005, o administrador Carlos Martins Nascimento, 35 anos, nunca tinha assistido a nenhuma série na vida. Descobriu “Lost” quando a produção passou a ser exibida nas madrugadas da Globo e ficou tão aficcionado que desde então já assistiu 9 vezes (são 6 temporadas e 121 episódios) ao seriado e está se preparando para ver pela 10ª vez agora que ela acabou de entrar na Netflix. “Lembro que quando a Globo anunciou a série, com aquele clima de suspense, aquilo me chamou a atenção. O primeiro episódio já foi amor à primeira vista. E ela sempre deixava bons ganchos para o próximo episódio. Naquela época não tinha streaming ainda, a internet era péssima e a gente demorava horas para baixar os capítulos. Mas valia muito a pena”, recorda Carlos que chegou a ganhar o apelido de “Lost” em sua cidade, Guanhães, no Vale do Rio Doce.

 

Carlos Martins Nascimento é fanático por 'Lost' e se prepara para ver a série pela décima vez. Foto: Fred Magno/O TEMPO

 

“Eu era adolescente e fiquei tão viciado que só falava naquilo. Alguns amigos passaram a me chamar de Lost (risos). Acho que o que mais me pegou foi justamente pelo fato de estar na adolescência, na fase de formação de caráter, de conceitos, e ’Lost’ trazia muita lição de moral, de como conviver com as pessoas, as diferenças, além de abordar temas variados como questões espirituais, tecnologia, maçonaria. E até hoje é muito atual”, expõe Carlos Martins que coleciona alguns objetos relacionados à série como um box de DVD comemorativo, um boneco de um dos personagens, e até uma ‘passagem aérea’ da Oceanic. “Foi uma ação feita na época onde era possível criar uma passagem para o voo que caiu na ilha. E uma vez até tive a sorte de um dos atores da série me responder no Instagram, o Terry O'Quinn, que faz o John Locke, meu personagem preferido”, recorda.

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Há quem esteja descobrindo a série só por agora e nem por isso ela deixa de causar o mesmo impacto. É o caso do contador Lucas Amaro, que tinha apenas 3 anos quando “Lost” estreou. Naquela época, ele nem sonhava em acompanhar a produção lançada pela ABC e foi há apenas um mês, quando “Lost” passou a ficar disponível na Netflix que Lucas acabou fisgado. “Eu fui almoçar na casa da minha mãe e enquanto ela preparava a comida, a gente começou a dar uma espiada no catálogo da Netflix. E aí me deparei com ‘Lost’. Nós dois ficamos fascinados. Acabou que minha mãe nem fez o almoço e eu gostei tanto que acabei maratonando cinco das seis temporadas em 7 dias”, conta.

Lucas diz que nunca quis saber mais detalhes da história - ele assegura desconhecer até o final - e que chegou a desdenhar certa vez de um amigo quando ele o indicou ‘Lost’. Mas hoje é fã de carteirinha da saga de Jack, Kate e cia. “A gente começa a ver e não consegue parar. Fica preso mesmo. Todo episódio termina com um gancho. Tem os mistérios, os dramas dos personagens, as sociedades secretas, as viagens no tempo. Ela varia tanto de tema que te deixa curioso e envolvido. Acho que é por isso que ‘Lost’ cativa tanta gente e mesmo depois de tanto tempo”, frisa.