Federico Puppi, 39, começava a aprender as primeiras palavras quando foi apresentado à música. Com apenas 4 anos, a avó o matriculou em um curso oferecido por uma biblioteca de Hône, pequeno vilarejo onde nasceu, localizado em Aosta, no Norte da Itália, com cerca de 1.200 habitantes. Aquele foi um movimento inusual.

Até então, ninguém da família do italiano havia despertado para a arte. “Meu pai é engenheiro, minha mãe, professora de matemática”, conta. A avó, por sua vez, sequer sabia o que era um violoncelo. Mas, ao ouvir a melodia harmoniosa desprendida das quatro cordas e a manusear o instrumento maior que ele mesmo, Puppi sabia, mesmo que inconscientemente, que o violoncelo faria parte indubitável de sua vida.

Ainda criança, ele começou a se dedicar aos estudos do violoncelo no Suzuki Center, que acabara de chegar à Itália, oferecendo uma abordagem para o ensino da música similar à aquisição da língua materna. Aos 14, ingressou no Conservatório de Aosta e, na sequência, mudou-se para a Espanha para estudar música moderna no Liceu de Barcelona.

Com o passar do tempo, Puppi se interessou também por outros instrumentos, como piano, viola da gamba, violão, guitarra tenor, baixo e instrumentos de percussão, todos aprendidos de forma autodidata. Mas, sem dúvidas, é ao violoncelo que o artista mais se dedica. E é com ele que o violoncelista se apresentará, ao lado de Vera Holtz, no espetáculo “Ficções”, dirigido por Rodrigo Portella, em cartaz pela terceira vez em Belo Horizonte, de sexta (20) a domingo (22).

O artista é responsável por toda a trilha sonora da montagem, que já soma 300 apresentações. Em cena, ele também atua. “Ocupo um lugar híbrido: de espectador, cúmplice, uma figura meio indefinida. O projeto já nasceu com esse propósito. O Rodrigo queria que eu estivesse no palco, me utilizando tanto musical quanto cenicamente. A montagem foi pensada como um casamento entre música e dramaturgia literária teatral. Música e linguagem verbal estão completamente fundidas, se completam”, conta Puppi, lembrando que o processo de criação foi intenso.

Ele e Portella chegaram a morar juntos e, ao longo de 40 dias, não se falava de outra coisa naquela casa. “Surgiam altas ideias já no café da manhã”, conta.

Nos últimos dois meses, a propósito, Puppi registrou uma série de trabalhos seus na capital. Além de “Ficções” – que garantiu a ele o Prêmio Shell de melhor música –, o artista criou a trilha sonora de outros três espetáculos que passaram pela cidade. O mais recente deles foi o novo espetáculo do Grupo Galpão, “(Um) Ensaio sobre a Cegueira”, também sob direção de Portella, que ficou em cartaz até o início deste mês.

“Trabalhar com o Galpão foi uma das melhores experiências da minha vida, tanto pelo o que eles representam para o teatro brasileiro, já muito grandioso, mas também pelo que entregam. Todos são extremamente disponíveis, abraçavam qualquer proposta, por mais maluca que pudesse parecer, e nunca diziam ‘não’. O elenco do Galpão já tem uma certa idade, mas mantém o entusiasmo de criança, e isso é extremamente raro. Essa entrega, essa curiosidade e essa força coletiva são o que fazem do Galpão o Galpão”, elogia.

Puppi também compôs a trilha de duas montagens que passaram por Belo Horizonte recentemente: “Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes”, da companhia franco-brasileira Dos à Deux, e “Como Água”, do grupo de dança belo-horizontino Primeiro Ato.

“O primeiro é um espetáculo de teatro físico, em que não é falada uma palavra, então há música do início ao fim. É uma montagem muito intensa, elaborada por duas pessoas que, além de trabalharem juntas, são um casal ídolo da arte e da vida”, conta. Já o trabalho com o Primeiro Ato era um desejo antigo.

“Sou amigo da Suely [Machado, a diretora] há bastante tempo. Eu a conheci informalmente por meio do percussionista Marco Lobo. A gente se encantou um pelo outro artisticamente falando. Ela foi assistir ao ‘Mutações’, com o Luiz Melo, com trilha minha. Depois disso, ela me disse: ‘Agora quero trabalhar com você’ e me convidou para a montagem. Foi um processo muito bonito”, comenta.

O interesse de Federico Puppi pelo teatro surgiu a partir de um relacionamento amoroso. “O teatro entrou na minha vida por meio da Susana Nascimento, atriz com quem fui casado por nove anos. Fizemos juntos uma peça infantil, na qual eu tocava e atuava ao mesmo tempo. Foi nesse processo que conheci o Rodrigo Portella, com quem tenho uma amizade muito forte. Já tínhamos feito algumas coisas pontuais, mas o primeiro trabalho mais estruturado foi ‘As Crianças’, para o qual compus a trilha sonora. A partir daí, começou uma colaboração contínua. Temos uma sintonia criativa muito especial”, comemora.

Vinda para o Brasil

A escolha do Brasil como país de morada também teve a ver com um romance: o primeiro casamento de Federico Puppi foi com uma brasileira. Os dois moraram na Itália, mas, em 2012, decidiram deixar o país.

“Já conhecia o Brasil a turismo, e viemos passar um tempo aqui, no Rio de Janeiro. Acabamos nos separando, e decidi ficar mais um pouquinho, e mais um pouquinho... e já se passaram 13 anos. Foi uma aventura que se estendeu por muito tempo”, celebra. Logo que chegou, mal falando português, Puppi começou a tocar em saraus, bares e quiosques cariocas. Em um desses saraus, estava Maria Gadú, e Puppi a acompanhou em uma música que acabara de compor.

“Pouco tempo depois, ela me ligou para me chamar para um projeto do Banco do Brasil de covers, em que fazia um repertório só de Cazuza. Fizemos essa turnê juntos, e, a partir daí, entrei para a banda dela. Depois, fizemos o ‘Guelã’, álbum que assino com ela na produção. Fizemos uma turnê de três anos, com três passagens pela Europa”, recorda.

Com o disco, Puppi foi indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, em 2016. Também recebeu uma indicação ao Grammy norte-americano pelo álbum “Magic”, de Sergio Mendes. O reconhecimento veio, enfim, no ano passado, quando venceu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa, pelo trabalho “Mariana e Mestrinho”.

Paralelamente à criação em parceria com outros artistas, Federico Puppi desenvolve um trabalho autoral sólido. Em 2015, lançou seu primeiro disco, “O Canto da Madeira”, considerado o melhor disco instrumental do ano pela crítica especializada. Três anos depois, seu segundo álbum, “Marinheiro de Terra Firme”, foi lançado com a participação de Milton Nascimento, com quem acumula algumas histórias.

“Criei a música ‘Capitão do Mar’ muitos anos atrás justamente para que Milton a cantasse. Também apareço no documentário Milton Bituca Nascimento, no trecho gravado em Londres”, orgulha-se. Durante a pandemia, lançou outro trabalho solo, o “Crisalide”, que “quebrou muitas barreiras geográficas”, chegando a lugares jamais imaginados pelo artista, como uma joalheria de Nova York, que usou uma de suas músicas em um comercial. “Foi o som que mais viajou pelo mundo”, brinca.

Música de Puppi nas novelas

Federico Puppi também grava músicas para novelas e séries. São 12 até o momento. “Mas as músicas não são minhas, são dos produtores da Globo. Eles me enviam as faixas, eu gravo no estúdio e devolvo pronto”, conta. No caso de “O Auto da Compadecida 2”, porém, foi ele quem compôs a trilha da sequência do julgamento de João Grilo, em parceria com o produtor musical Beto Lemos. “Também gravei ‘Fiadeira’, música de Juliano Holanda e cantada por Maria Bethânia”, conta. Aos 39 anos, dos quais 13 são vividos no Brasil, Federico Puppi sente que já viveu “muito e pouco”, mas tem certeza de que quer mais.