Quarenta anos depois, Dira Paes está novamente em meio à exuberância da floresta lutando contra a exploração predatória do homem. O tema percorre “A Floresta de Esmeraldas” (1985), filme de John Boorman que marcou a estreia da atriz paraense no cinema, e também está no centro da trama de “Pasárgada”, primeiro longa-metragem dirigido por Dira, que entra em cartaz a partir de hoje nas salas do país.
“Quando me reencontrei com o Boorman, eu falei: ‘Muito obrigada!’. Falei: ‘O que seria de mim se você não tivesse me descoberto?’. E ele respondeu: ‘Eu não descobri você. Eu reconheci você’”, registra Dira, em entrevista por videoconferência, sem esconder as lágrimas ao se lembrar do episódio. “Foi quando eu decidi ser atriz”, observa. Ela fez questão de dedicar o novo trabalho ao inglês e também a Walter Lima Jr.
O brasileiro assinou “Ele, o Boto” (1987), segundo trabalho de Dira, que também aborda questões ligadas à natureza. “Fiz uma homenagem aos meus dois primeiros diretores. Eu falo que eles me ensinaram a voar, né?”, assinala, valendo-se de uma metáfora, já que sua personagem em “Pasárgada” é uma ornitóloga. Ela recorda que, em sua primeira conversa com Lima Jr., achou que não ganharia o papel.
“Saí de Belém e vim para o Rio de Janeiro. Estava há dois meses fazendo o curso (de teatro) da CAL quando fiz o teste, a convite do (produtor) Flavio Tambellini Jr. Chegando lá, eu falei muito, muito sobre boto, infância, e não o deixei falar. Quando saí de lá, falei: ‘Já era. Perdi total’”, conta, divertida. A escolha de Cássia Kis para viver sua irmã em “Pasárgada” tem, por sinal, relação com o longa de Walter Lima.
“Era o primeiro papel dela no cinema, fazendo justamente a minha irmã. E, quando pensei na irmã para o meu filme, ela foi minha escolha, como uma homenagem mesmo. Tudo são vínculos. Eu aprendi muito com o Walter. Ali eu já queria ser atriz mesmo. Estava atenta a tudo, sabia o que estava fazendo. Olhava para a câmera com vontade de que ela gostasse de mim. Estava com 17 anos. Foi um desabrochar”, analisa.
Na pele de Irene, uma especialista em pássaros que tenta encontrar espécies raras na Mata Atlântica, Dira relata que buscou compor uma personagem que fosse o seu oposto. “Eu queria um filme que tivesse este aspecto mais lunar. Eu sou muito solar nas minhas interpretações. Queria uma mulher desconectada de sua essência, numa maturidade um pouco enrijecida pela vida, por não saber lidar com os seus afetos”.
A personagem precisaria ter um trabalho mais solitário. “Não poderia ser mulher escritora, porque no cinema a gente já viu à beça. Essa profissão (de ornitóloga) tem uma metáfora linda, que é de uma mulher penetrando na mata, nela mesma e neste feminino em busca da liberdade. Ela encontra nos mateiros a própria natureza, pois eles falam a língua dos pássaros, daquele lugar. E eles têm a sabedoria da vida”, destaca.
Para Dira, “Pasárgada” é uma reflexão ampla, a partir de uma mulher que perde o desejo, sem conseguir elaborar os seus afetos. O outro tema, claro, é a questão do meio ambiente. “A gente precisa despertar para esse cotidiano da pa<CW-40>uta ambiental. Tem que melhorar dia a dia, assim como a gente melhorou a nossa consciência em relação aos nossos direitos humanistas, sobre gênero e raça”, alerta.
Carrão se inspira no avô
O lançamento de “Pasárgada” acontece justamente num momento de catástrofes climáticas no Brasil e no mundo. “Me dá um pouco de angústia imaginar que, a partir de agora, sempre será o momento de um filme como esse, porque a gente está se habituando a todo esse tipo de estresse ambiental contínuo. Estou muito preocupado com essas queimadas todas. Isso diz muito sobre o filme e sobre a antena da Dira e a relação dela com a natureza”, comenta Humberto Carrão, que interpreta um mateiro no longa-metragem.
O ator salienta que o filme foi feito durante a pandemia de Covid-19. “Ou seja, a gente filmou num momento de grave crise relacionada à expansão do homem na natureza, mas as coisas parecem claramente piores. Os sinais são mais urgentes ainda”, lamenta. O personagem Manuel, comenta, foi muito inspirado em seu avô, que tinha um grande conhecimento de aves. “Eu andava com ele de mãozinha dada quando era criança e ficava muito assustado e encantado com o fato de ele saber o nome dos frutos, das árvores... Achava aquilo um pouco mágico. Já adulto, me deu certa vergonha não me parecer nem um pouco com isso”.
Carrão conta que, quando lhe chegou o convite do filme, ele já estava num movimento em direção ao mato. “O que foi fundamental para a construção do Manuel foi a minha chegada à fazenda (próximo de Macaé, local das filmagens). Fiquei lá muitos dias, com o Ciça (mateiro de verdade que acabou virando ator), que me ajudou muito, porque eu estava em todas as atividades dele. Eu andava para cima e para baixo com ele, cuidando dos animais, ficando um tempo sem fazer nada e ‘roubando’ as coisas... Eu pedia que ele me deixasse, pelo amor de Deus, pôr no filme”, revela o ator.
“Assim que cheguei, percebi que eu queria que o Manuel fosse um pouco como o Ciça, no sentido de que ele é uma figura especial, que é muito poderosa e que, ao mesmo tempo, tem uma postura resguardada. Alguém, sem saber das coisas, pode achar que é ignorância, que ele está olhando para baixo porque tem vergonha ou medo. Acho bonito isso, porque ele o faz por resguardar o seu lugar de observador. É por isso que o Manuel consegue entender a natureza, quais são aqueles pássaros e imitar o som. Não me interessava fazer um mateiro sensual e sedutor, ou misterioso”, explica.