TIRADENTES. Sérgio Machado deve ao escritor Jorge Amado o fato de fazer cinema hoje. Em 1993, após ver o média-metragem "Troca de Cabeças", que o cineasta baiano fez como conclusão do curso de jornalismo, o autor de "Gabriela" e "Dona Flor e Seus Dois Maridos" enviou uma cópia em VHS para Walter Salles Jr., junto a um bilhetinho: "Eu intuo que esse menino tem algum talento. Se você achar que tem...", escreveu.
Mais de três décadas após ter sido apadrinhado por Salles, que produziu os primeiros projetos dele, chegou a hora de Machado retribuir o gesto do escritor, falecido em 2001, com o documentário "Os 3 Obás de Xangô", exibido na 28ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. A chuva quase cancelou a sessão no Cine-Praça, mas Machado pediu a Xangô, durante a apresentação, para não deixar cair uma gota sequer. E foi atendido.
"A chuva parou na hora certinha. Tinha certeza que haveria a sessão", celebra Machado, que, um dia antes da exibição tiradentina, ocorrida na quinta-feira (30), estava em Salvador, onde promoveu uma sessão especial para terreiros de candomblé. A religião de matriz africana surge na tela sob o olhar de três grandes mestres baianos das artes: Jorge Amado, o pintor Carybé e o cantor e compositor Dorival Caymmi.
"Esse projeto tem um paradoxo, porque, ao mesmo tempo que é muito pessoal, partiu de um convite para fazer um filme sobre a amizade dos três, inicialmente baseado nas cartas trocadas entre eles. Mas eu disse que toparia se fosse uma coisa pessoal, trazendo para esse lugar do candomblé e o fato de eles serem obás de Xangô", assinala Machado, explicando que os obás fazendo a ponte entre a religião e a sociedade.
"Tenho uma tese de que a Bahia foi inventada por essas mães de santo, como Mãe Senhora e Mãe Menininha, que têm um elemento muito forte na formação do estado, lançada para o mundo por Jorge Amado, Carybé e Caymmi, responsáveis por formar esse imaginário baiano", destaca. A relação de Machado com o candomblé não surgiu por acaso, estimulada por sua mãe, que desde cedo o levava aos terreiros de Salvador.
"Já tinha alguns anos que eu queria me reaproximar. Foi um processo muito rico", comenta o diretor, que reafirma a importância de Jorge Amado em sua carreira no cinema. O escritor se interessou por "Troca de Cabeças", do gênero terror, devido à participação de Grande Otelo no elenco. "Foi o último filme dele. Mas hoje esse média-metragem só tem uns pedacinhos no YouTube", lamenta.
O agradecimento em forma de filme já era para ter acontecido há 30 anos, com "Cidade Baixa", que marca a estreia de Machado na direção. "Eu queria que ele tivesse uma mistura dos três. Estava lendo muito os livros de Amado, ouvindo as músicas de Caymmi em looping. Fiz um storyboard com pinturas de Carybé e fotos de Pierre Verger", lembra. Foi Eduardo Coutinho, diretor de "Cabra Marcado para Morrer", quem lhe tirou de cabeça.
"Coutinho falou: 'Ah, isso aí não é bom para seu primeiro filme. Não é bom ter tantas referências. Faz uma história sua", recomendou um dos grandes nomes do documentário brasileiro. "Anos depois volto com a ideia de fazer um filme sobre eles", comemora. "3 Obás de Xangô" terá várias pré-estreias, muitas delas destinadas aos candomblecistas, antes da estreia, prevista para 24 de abril.
Um dos temas do documentário é a intolerância religiosa. "É algo que me incomoda muito, porque sou baiano e minha mãe era advogada, militando muito contra a intolerância religiosa. Convivi com muitos personagens que estão ali (no filme), ouvindo-a conversar com aquelas pessoas. Ela organizava seminários, encontros, pois tinha muita preocupação com o crescimento desenfreado dos evangélicos que poderia sufocar o candomblé".
Hoje, diz ele, essa intolerância está mais viva do que nunca. No final do ano passado, a animação infantil "Arca de Noé", dirigida por ele e Alois de Leo,que teve mais de 400 mil espectadores nos cinemas, sofreu ataques, sendo apontado como produto "de Satanás, que era de Vinicius de Moraes e não da Bíblia". Mas nada que o fez mudar de ideia sobre o lançamento de "3 Obás de Xangô".
"No Brasil, acho que não dá nem para temer, porque você não ai de casa. O importante é estar em paz com as suas escolhas e acreditar que está do lado certo", destaca Machado, que diz exultante com o sucesso de "Ainda Estou Aqui" nos cinemas (mais de quatro milhões de espectadores no Brasil) e nos festivais de cinema, sendo indicado a três Oscar, incluindo para Melhor Filme, um feito inédito.
"Acompanhei o filme desde o início, li os argumentos, as ideias, as muitas versões do roteiro. Waltinho (Walter Salles) tem uma grupo de roteiristas e diretores que leem e discutem. Ele é um irmão para mim. E Nanda (Fernanda Torres) sou encantado por ela, sonho em fazer um filme com ela. É um momento chave para o cinema brasileiro e para a cultura do pais", observa.
Machado chama a atenção para o fato de "Ainda Estou Aqui", um drama passado na época da ditadura militar e inspirado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, ter conseguido dialogar com o público e "furado a bolha". "Parecia algo intransponível, mas chegou nas pessoas", vibra. Algo que ele buscará repetir com a cinebiografia sobre o seringueiro e sindicalista Chico Mendes, um de seus próximos projetos.
"Estou trabalhando em alguns roteiros. Não sei qual que vai sair primeiro. (O sobre Chico Mendes) é um dos que estou trabalhando com muita intensidade. Também quero levar para a ficção um documentário que fiz, chamado 'A Luta do Século' (lançado em 2018), sobre a rivalidade entre dois lutadores de boxe, Luciano Todo Duro e Reginaldo Holyfield", adianta.
(*) O repórter viajou a convite da organização da Mostra de Cinema de Tiradentes