A narrativa de "Flow" avança em duas vias, paralelamente. Apesar de não se comunicarem, elas são igualmente interessantes, fazendo dessa animação de baixo custo, feita por um país sem tradição no segmento (a Letônia, ex-república soviética que conquistou sua independência há apenas 35 anos), um dos destaques do Oscar.
Com duas indicações, na categoria específica de animação e de melhor produção internacional, o filme de Gints Zilbalodis, em cartaz nos cinemas, exibe, num primeiro plano, a história de um gato solitário que, após uma forte inundação na região onde mora, luta pela sobrevivência ao lado de outros bichos que vai conhecendo pelo caminho.
Essa parte mais evidente já é, por si só, um achado, porque não há diálogos. O filme consegue nos prender de outras maneiras, especialmente na condução de sua "câmera", que ora acompanha o gato em suas andanças, ora examina o entorno do personagem, numa forma bastante original, como se fosse um narrador silencioso daquela realidade.
Não se trata de qualquer realidade, é bom que se diga. A fuga dos animais não acontece de maneira despropositada. Cada ação, cada encontro, tem um objetivo, no sentido de humanizar os personagens, que vão, cada vez mais, evidenciando sentimentos e decisões, tornando indivíduos com personalidades muito desenvolvidas.
O que vale até para o cachorro que surge, primeiramente, meio bobalhão, mas que, muitas vezes, revela um grande caráter, com um sentido aguçado de coletividade e altruísmo. Esse é, por sinal, um dos temas mais marcantes de "Flow", atentando-se para a maneira como a bicharada precisa se organizar para sobreviver ao dilúvio.
O gato é, curiosamente, o personagem que menos se complexifica, agindo por respostas mais instintivas, diferentemente da capivara, que antes só pensava em dormir e é o primeiro a tomar a ação de salvar um grupo de animais quando estão num barco à deriva. Há também um lêmure apegado a objetos e que se vê obrigado a decidir entre eles e seus amigos.
Desta forma, o gato é um protagonista meramente observador, sem agir preponderantemente na ação. É o que nos leva a segunda via do filme, que traz um caráter mais misterioso, espiritual até. Em primeiro lugar, se verifica que não surge nenhum humano durante a história. Apenas resquícios deles, que nos fazem criar conjecturas.
Uma delas é de que, devido à emergência da inundação, todos saíram às pressas para o mais longe do lugar. O pouco que se vê nos leva a pensar que estavam ali num passado recente (talvez horas). O próprio gato nos sinaliza para isso, ao permanecer numa casa onde vemos esboços de esculturas e uma cama semi-arrumada.
Chama a atenção o fato de haver grandes esculturas de felinos no jardim da casa. Só deles. Esses objetos fazem uma conexão com monolitos altos e estreitos que perfazem o caminho da turma de bichos. Aparentemente, esse dilúvio já era aguardado por alguns povos, o que se confirma quando a trupe chega a uma espécie de santuário.
Um dos animais vai na direção de um local que parece feito um altar de sacrifícios e contato espiritual. Tudo isso somado nos faz cogitar a possibilidade de uma razão mística para o dilúvio e o que pode ser a extinção da espécie humana, talvez uma resposta aos cataclismas climáticos que estamos assistindo cada vez mais.
Ainda dentro dessa leitura especulativa, quando a inundação repentinamente se interrompe, os bichos veem uma poça no chão e todos eles, ao mesmo tempo, se miram no espelho d'água, como se dissessem que, a partir daquele momento, seria necessário que observassem, de maneira coletiva - e tudo o que aconteceu antes foi uma espécie de aprendizado.
Assim, nesta "arca de Noé" sem Noé temos, como na Bíblia, uma história que fala sobre, possivelmente, um castigo recebido devido à ação humana.Mas nada é explicitado, o que torna essa segunda narrativa fascinante, com os animais dando maior valor a sentimentos que foram esquecidos, principalmente a solidariedade.
Além desse conteúdo cheio de sutilezas, Zilbalodis também conseguiu, a partir de um programa gratuito de computação gráfica, uma animação que, se não é rica em detalhes (como o desenho de pêlos e da água), consegue ir ao essencial para nos envolver e colocar o Letão no mapa da produção cinematográfica mundial.