A cartografia da Belo Horizonte proposta pelos artistas visuais Maria Vaz e Marlon de Paula não se restringe aos limites físicos da cidade. Ao contrário. No desenho imaginado por eles, diferentes temporalidades e imaginários se sobrepõem, impregnando a paisagem urbana com memórias – que a capital sistematicamente põe abaixo – e estórias – onde fantasia e realidade transitam em uma mesma via.
É essa urbanidade complexa que a dupla apresenta na exposição “Tramontana”, que reúne trabalhos em diferentes linguagens, como fotografias artísticas e documentais, algumas alteradas por meio de recursos de Inteligência Artificial (IA), instalações sonoras e videoinstalações.
Aberta nesta sexta-feira (4 de abril) no casarão histórico da Fazendinha Dona Izabel, na Barragem Santa Lúcia, a mostra é inaugurada com a performance do Grupo Rosas de São Bernardo, formado por mulheres com mais de 60 anos da região Norte de BH, que se apresenta com um repertório em que, dialogando com o desejo de investigação memorialística da mostra, entoa cantigas do seu tempo de crianças.
Fruto de uma pesquisa realizada ao longo de dois anos, “Tramontana” surgiu do interesse comum de Maria e Marlon pelo universo do realismo mágico. “A gente tem esse interesse por histórias da cidade que estão no imaginário, nesse campo do saber comum, não necessariamente nos arquivos oficiais, não estão institucionalizadas”, explica ela, inteirando que, inicialmente, os dois artistas se debruçaram sobre leituras e, depois, foi a campo, ouvindo moradores de todas as regionais de BH, além de pesquisadores, sobre causos envolvendo figuras folclóricas da capital.
“Quando a gente ouvia uma história, ia perguntar sobre ela, e então outras camadas iam aparecendo, outras formas de contar. E optamos por preservar essa mutabilidade, essas lacunas, deixando algumas informações em aberto e preservando esse lugar do mistério, das coisas que não são plenamente entendidas”, lembra Maria.
“Enquanto artistas visuais, nos interessa quando a literatura constrói essas imagens que misturam o real e o fantástico. E nos interessa quando outros artistas traduzem esse realismo mágico em suas poéticas”, sugere Marlon, admitindo o desejo de dar visualidade a algumas das narrativas orais que orbitam a história de BH, como o duelo de dança entre Ricardo Malta e o Capeta da Lagoinha ou os tantos casos envolvendo Dora Vivacqua (1917-1967), mais conhecida como Luz Del Fuego.
Ele complementa que o título da mostra tem origem em um conto do escritor colombiano Gabriel García Márquez, traduzido por ele como “vento de terra inclemente e tenaz”, que modifica, abre e fecha caminhos. Para os artistas, a expressão funciona como uma analogia para a vocação moderna presente no ethos belo-horizontino desde a fundação da cidade, projetada para representar o novo, em oposição à antiga capital do Estado, a histórica Ouro Preto. Na interpretação deles, é como se essa lógica funcionasse como o vento que sempre aponta para frente, para o norte, mas que desnorteia.
A IA como ferramenta
Marlon de Paula explica que o projeto, que agora deságua na exposição “Tramontana”, nasceu do desejo de investigar os usos da Inteligência Artificial (IA) no campo da arte. “Começamos esse trabalho há dois anos, quando essa era uma tecnologia ainda muito incipiente”, recorda. Ele indica que, diferentemente dos usos mais habituais, a dupla optou por não criar imagens completamente artificiais. “O que fizemos foi pegar imagens de arquivo e inserir elementos nelas”, aponta.
“É curioso que, mesmo sendo tão antagônicas, as narrativas orais e a IA compartilham, nesse trabalho, essa mesma premissa de recontar, de reinventar a paisagem. Claro, a primeira é tradicional, coletiva, a segunda é uma inovação tecnológica, centralizada nas mãos das big techs… São questões que não nos escapam, sabemos dessas questões e, como artistas, usamos essa ferramenta como forma de esculpir a nossa relação com o mundo”, reflete.
Maria Vaz destaca que, por vezes, as intervenções feitas nas imagens históricas nada têm de extraordinário. E, por vezes, há o fantástico surge de maneira contundente. “A gente quis mesmo desnortear, misturando criação e documentação, sem deixar esses limites muito claros”, explica, ponderando que, se o interesse pelas funcionalidades das IAs motivou o início dos trabalhos, com o tempo outras linguagens artísticas foram se infiltrando à estrutura de “Tramontana”. “A gente expandiu isso, porque as histórias foram nos levando para outras linguagens, incluindo videoartes, instalações, instalações sonoras e até um pouco de literatura”, destaca ela.
Folclóricos
Sediada em uma das poucas construções remanescentes da antiga Curral Del Rey, apresentada a Marlon e Maria durante o processo de pesquisa do projeto, “Tramontana” começa com uma festa. Mais precisamente, com uma videoinstalação em TVs de tubo que remete à festa na qual o Capeta da Lagoinha disputa uma batalha de dança, em um baile no fim dos anos de 1980, com Ricardo Malta.
Conforme a lenda, após perder, a mulher que dançou com o tinhoso acaricia seu rosto e, sem querer, derruba seu chapéu, expondo o par de chifres daquele ser. Assustada, ela grita e desvia o olhar para o chão, percebendo que seus pés eram como patas de um bode. Os rapazes presentes perseguem a criatura, imaginando ser um homem, que se refugia no banheiro, mas, quando seus perseguidores invadem o lugar, nada encontram, se não um forte cheiro de enxofre.
Depois do baile, na mostra, o público é levado a uma encruzilhada. “Essa é uma palavra que atravessou nossa pesquisa de campo, que coincide com o traçado da cidade planejada, com ruas que se bifurcam, e que, na cosmogonia africana, representa o lugar do encontro”, detalha Marlon. É nesse móbile que estão fotos artísticas que remetem à personagem Luz Del Fuego, nome artístico da atriz, dançaria e escritora Dora Vivacqua, percussora do naturismo no Brasil.
“Vinda de Cachoeira do Itapemirim, no Espírito Santo, com a família, ela ficou famosa depois de se mudar para o Rio de Janeiro. Mas foi em BH que Dora construiu suas memórias”, comenta Marlon, lembrando que ela foi contemporânea de Carlos Drummond de Andrade durante sua estada na capital mineira. O artista imagina que Luz Del Fuego tenha presenciado o episódio em que Pedro Nava e Drummond incendiaram um varal de roupas no casarão dos Vivacqua, com a intenção de ver as moças que viviam lá com suas camisolas.
“Fico pensando na Dorinha vendo esse fogo que consome as roupas das irmãs e acho que isso ajuda a entender essa personagem que ela vai se tornar no futuro”, aponta, acrescentando vê-la como uma figura barroca, que incorpora elementos cristãos, tão comuns no desenho urbano de Belo Horizonte, às suas performances – caso da serpente, presente nas suas apresentações de dança, que causavam frisson.
Supressão de memórias
Em “Tramontana”, a encruzilhada leva também à instalação das mulheres lavadeiras do Barreiro. “É uma região perto da Serra do Rola Moça, que, como é comum em lugares próximos de montanhas, tinha muitas nascentes e bicas. Nas memórias de quem vivia lá, por conta dessa riqueza hídrica, era frequente a presença de lavadeiras”, explica Maria Vaz, citando que, além de fotos históricas, alguns elementos foram dispostos no espaço, como bacias d’água.
Por fim, encerra a exposição um rito de destruição: uma videoarte com imagens da implosão de um conjunto de edifícios que abrigava a Galeria do Comércio, o Mercado Mauá e o Hotel Panorama na região da Lagoinha, porta de entrada de mercadorias e imigrantes que vieram trabalhar na construção da capital. “A gente vê, ali, como esse bairro foi sendo esfacelado, como suas memórias foram sendo violentadas em função de um projeto de melhora do escoamento de trânsito”, critica.
Curiosamente, o conteúdo, criado a partir de arquivos encontrados no Museu da Imagem e do Som (MIS), é conjugado com filmagens da festa de aniversário de 100 anos de um senhor que vive naquele mesmo bairro. Uma combinação que dialoga com a proposta de “Tramontana”, que exalta o potencial de resistência que as memórias construídas coletivamente – podendo até assumir a forma das lendas e mitos urbanos – adquirem ao se opor, simbolicamente, ao descaso da cidade com sua própria história.
Para fechar de maneira diferente, não é uma festa, mas um rito de destruição de uma memória, que é a demolição de um prédio, de uma feira, no Lagoinha. A gente encontra isso na tese da Priscila Musa, que fala dessa implosão. A gente vai no MIS e vê esses arquivos. E a gente vê que esse é um ponto fulcral, a gente vê sobre esse bairro que foi se esfacelando em função do escoamento de trânsito. Violências que esse bairro foi submetido. Mas não falamos só disso, mas de uma certa, movimento dialético, trazendo um senhor de 100 anos no bairro. Juntamos esses dois vídeos. Implosão de um prédio e o aniversário desse senhor, pensando nesses dois pontos de contato.
SERVIÇO:
O quê. Exposição “Tramontana”, de Maria Vaz e Marlon de Paula
Quando. Abertura nesta sexta-feira (4 de abril), de 19h às 22h. Visitação até 31 de maio. Quartas e quintas-feiras, das 10h às 16h; sextas e sábados, das 13h às 18h.
Onde. Fazendinha Dona Izabel (avenida Arthur Bernardes, 3.120, Barragem Santa Lúcia)
Quanto. Gratuito