Enforcada, estuprada, assassinada a facadas na frente da filha de doze anos. O périplo de uma alma que deseja ser brasileira a encarna em indígenas, caboclos, alferes e mulheres escravizadas. O enredo escrito por João Ubaldo Ribeiro ao longo de mais de 700 páginas que comportam 400 anos da história brasileira chega a Belo Horizonte neste final de semana com o espetáculo “Viva o Povo Brasileiro (De Naê a Dafé)”, adaptação cênica para o romance que, em 1985, rendeu os prêmios Jabuti e Golfinho de Ouro para seu autor.

“O Brasil é esse país que precisa ser revisitado, estudado e compartilhado o tempo todo. João Ubaldo é o Brasil na veia!”, justifica o encenador e diretor teatral André Paes Leme, que, em sua trajetória, já levou para o palco clássicos da literatura nacional vindos de Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues.

André conta que as experiências anteriores acenderam a vontade de trabalhar com um espetáculo que tivesse “esse aspecto histórico e socialmente crítico do Brasil”, o que ele encontrou ao se deparar com a obra de Ubaldo, há cerca de 15 anos. “Fiquei encantado com a força, a extensão, a curva no tempo que ele cria, e comecei a sonhar com essa montagem”, observa ele, que, durante muito tempo, questionou-se sobre a viabilidade do sonho.

“Fiquei me perguntando se era possível levar um texto dessa envergadura para o teatro, e entendi que sim, que o teatro é uma arte aberta a tudo”, destaca. O curso de doutorado na Universidade de Lisboa forneceu ao encenador as ferramentas para investigar as possibilidades cênicas de um projeto que ele imagina como uma trilogia. “O mais difícil foi examinar cada detalhe dessa obra”, afiança André.

Elementos

Com Mauricio Tizumba – vencedor do prêmio Shell na categoria melhor ator –, Júlia Tizumba, Alexandre Dantas, Cris Meirelles, Hiane, Hugo Germano, Jackson Costa, Ju Colombo, Jesus Jadh e Sara Hana no elenco, o espetáculo tem 30 músicas originais compostas especialmente por Chico César, com direção musical e trilha sonora a cargo de João Milet Meirelles, integrante da banda BaianaSystem.

“A principal teatralidade da montagem está focada no jogo dos atores, na relação com a palavra e no movimento de construção das personagens”, salienta André Paes Leme, para quem “a contação de história e o canto estabelecem uma conexão poderosa entre música e dramaturgia que atravessa a montagem com várias sensações e atmosferas”. “Digo que a trilha é tão forte que se torna uma ‘segunda’ dramaturgia…”, complementa.

A visualidade tanto da cenografia quanto dos figurinos tampouco é deixada de lado. “Ler um livro de 700 e tantas páginas não é simples, e acredito que o teatro pode ser mais uma arte a transmitir e compartilhar uma obra tão importante, e pode, inclusive, despertar o interesse no público de conhecer uma obra literária que fala da formação da nossa identidade”, sublinha André, que, ao refletir sobre o processo da adaptação, advoga em favor da busca de uma “autonomia dramatúrgica em relação ao original literário”.

“Não quer dizer transformar em diálogos, mas se apropriar de uma pulsação, uma essência da obra para encontrar uma linha base. Os romances oferecem muitas possibilidades e querer abarcar tudo pode gerar uma perda de concentração de ação e enfraquecer o acontecimento teatral”, diz ele, que se manteve próximo ao texto original.

Dedo na ferida

André diferencia a “experiência isolada de ler um livro do convite ao convívio do teatro”. Conciliando termos como liberdade e fidelidade, ele afirma que a adaptação do romance para a cena é “uma síntese”, mas que “as pessoas que leram a obra do Ubaldo vão reconhecer que mantivemos essa conexão”. “É quase uma obrigação artística que a versão cênica de um romance cometa algumas traições, até profundas, para encontrar sua própria identidade”, vaticina.

No horizonte, ele vislumbra montagens baseadas na obra do português Gonçalo Manuel Tavares e de um autor brasileiro contemporâneo que tem feito muito sucesso, mas despista sobre o escolhido. Por hora, segue entregue ao autor que “bota o dedo na ferida do Brasil de forma crítica e bem-humorada”. “João Ubaldo nos leva a pensar sobre a sociedade que queremos”...

Serviço

O quê. Espetáculo “Viva o Povo Brasileiro (de Naê a Dafé)”

Quando. Desta sexta (16) a sábado (17), às 20h

Onde. Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro)

Quanto. A partir de R$30 (meia) na bilheteria ou pelo www.sympla.com.br