Foi ao chegar ao litoral português, na região do Algarve, para as locações, que “o personagem nasceu de fato”, relembra Paulo Azevedo. Natural de Belo Horizonte, o ator integra o elenco de “Sobreviventes”, último filme do cineasta José Barahona, falecido no ano passado, e que estreia na capital mineira nesta quinta (10), tendo como pano de fundo algumas obsessões do diretor lusitano, como a escravatura e as implicações de um sistema sociopolítico injusto.
Paulo conta que “Sobreviventes”, no qual atuou ao lado de Roberto Bomtempo, Miguel Damião, Allex Miranda, Anabela Moreira e Zia Soares, dentre outros, com trilha na voz de Milton Nascimento, “é o resultado de quase dez anos de trabalho”. “A mensagem do filme é atemporal e trata de algo universal. Mesmo em uma situação extrema, é possível renunciar a preconceitos e valores ultrapassados para reconstruir uma nova história em sociedade?”, questiona.
O roteiro, assinado pelo escritor angolano José Eduardo Agualusa em parceria com Barahona, parte das expedições marítimas portuguesas no século XIX para flagrar uma trupe de náufragos que se encontra à deriva numa ilha isolada do Oceano Atlântico, composta por um fidalgo, um padre, um escravo, mãe e filha duma classe abastada e um marinheiro. Paulo Azevedo encarna o religioso.
“É um grande exercício dar vida a um personagem como Padre Angelim e não o julgar por suas atitudes e falas terríveis, ainda presentes no nosso cotidiano. Ele é um personagem covarde, medroso, com um passado obscuro, que se esconde atrás de uma batina, de uma instituição. Acredito que tenha sido meu trabalho mais complexo, desde as intensas rotinas de filmagens até lidar com a curva emocional de Angelim ao longo da trama”, sublinha Paulo, que teve que “mergulhar nos próprios preconceitos”.
Reconhecimento
A parceria entre Paulo e Barahona vem de longo tempo. Os dois se conheceram em 2013, durante os testes para protagonizar o longa “Estive em Lisboa e Lembrei de Você”, baseado no livro homônimo do escritor mineiro Luiz Ruffato. “Tivemos uma conexão imediata. Os meses de filmagem entre o verão de Cataguases, no interior de Minas, e o inverno de Lisboa nos revelaram uma visão comum de pensar a obra como um todo, além da paixão pelo Brasil”, destaca Paulo.
A colaboração seguiu com “Alma Clandestina”, de 2018, misto de documentário e ficção, “que retrata a intensa e breve trajetória de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, militante política que lutou contra a ditadura brasileira nos anos 1960”. “É um filme muito especial, que precisa ser mais visto e dialoga com ‘Ainda Estou Aqui’ e muitos outros filmes que buscam revelar importantes personagens pouco conhecidos da nossa história recente”, aponta o ator, que aproveita para refletir sobre o inédito Oscar de melhor filme internacional para o longa protagonizado por Fernanda Torres.
“Quando assisti ‘Ainda Estou Aqui’ saí com a mesma sensação que tive ao ver ‘Central do Brasil’, ‘Lavoura Arcaica’, ‘Cidade de Deus’ e tantos outros que reafirmam nossa potência criativa e poética. Esse filme é um marco histórico e espero que possa impulsionar mudanças significativas para o mercado audiovisual em língua portuguesa”, torce, salientando que “o português é o 4º idioma mais usado no mundo”.
“Quase 300 milhões de pessoas têm o português como língua oficial. Existe um mercado imenso a ser explorado, a começar de políticas públicas que incentivem eventos e ações que promovam o intercâmbio. Nossa cultura é imensa e pode ter um alcance global, como a nossa música, nosso cinema e nossas novelas já provaram”.
Trajetória
O último encontro de Paulo e Barahona foi em maio de 2024, na estreia mundial de “Sobreviventes”, em Lisboa. O diretor faleceu em novembro, aos 55 anos, após lutar contra uma “doença prolongada”, de acordo com o comunicado oficial. “Ele estava muito feliz com o filme, que nasceu da ideia de criar uma história no lugar, agora imortalizado na tela, que sempre visitava com a família. Ainda é muito difícil lidar com sua passagem, tão precoce. Ele tinha um novo projeto, um filme policial rodado no Rio de Janeiro, protagonizado por mim e pelo Roberto Bomtempo. Mesmo lutando pela cura, ele continuava sonhando cinema. Sua paixão pelo cinema e esta história era enorme. O Zé era um incansável operário da sétima arte. E isso está na tela”, garante.
A amizade transcendeu as telas. Durante o processo de criação de Padre Angelim, em razão do tempo escasso, Paulo confiou de olhos fechados nas indicações de Barahona. Ele assistiu “A Missão” (1986), de Roland Joffé; “Silêncio” (2016), de Martin Scorsese; “que trazem padres como protagonistas em contextos semelhantes”; e “Náufrago” (2001), de Robert Zemeckis, sem dispensar a leitura do livro “Nação Crioula”, de Agualusa, que inspirou personagens do enredo cinematográfico. “Foram quase dois meses de gravação, muitas horas por dia sob o sol e o frio da noite, lidando com o poder da natureza e a impotência humana, que também é um dos temas do filme”, analisa Paulo.
Com cerca de 40 títulos no currículo, o ator comemora 25 anos de uma carreira profissional em que “cada novo trabalho é uma celebração do ofício de atuar e reafirmar essa vocação, ainda mais em um país com políticas públicas culturais tão precarizadas”. “Sinto que ‘Sobreviventes’ é um marco da minha maturidade artística e um posicionamento importante como pessoa. Estar em um projeto com profissionais de diferentes países foi extremamente rico. Essa convivência trouxe diferentes olhares para a narrativa”, exalta Paulo, para quem “é preciso sempre relembrar determinados fatos da história”.
“A escravatura foi um dos maiores genocídios da humanidade e não pode se repetir jamais. A arte acaba sendo um instrumento poderoso de manutenção da memória. Quantos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial já não assistimos, e, ainda hoje, vemos a ascensão nazista? Estamos em um contexto muito difícil, de individualidade extrema, enfraquecimento do coletivo, onde muitos acreditam que ações totalitárias são a solução imediata para antigos problemas. Como se as nossas diferenças, uma das maiores riquezas humanas, fossem algo possível de ser eliminado. Nos últimos anos, tristemente estamos vendo a história se repetir, como se o mundo fosse dividido entre quem é humanista e quem não é”, arremata.
Serviço
O quê. Estreia de “Sobreviventes”, último filme do diretor José Barahona
Quando. Nesta quinta (10), às 20h20
Onde. Cine Belas Artes (rua Gonçalves Dias, 1.581, Lourdes)
Quanto. De R$15 (meia) a R$30 (inteira) na bilheteria ou pelo www.veloxtickets.com