A história de Virgínia Bicudo e Adelheid Koch é desconhecida por boa parte dos brasileiros. Quando Gabriela Correa e Sophie Charlotte foram convidadas para viver – no filme “Virgínia e Adelaide”, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas – duas personagens tão fundamentais para a trajetória da psicanálise no Brasil, que também representaram a força feminina numa época de forte machismo e racismo (décadas de 1930 e 1940), o primeiro processo pela qual passaram foi o de descoberta.

“Não conhecia Virgínia Bicudo, não conhecia Adelheid. Só fui conhecê-las realmente quando a gente foi trabalhar no filme. E a cada encontro semanal que a gente tinha, eu ficava maravilhada com a história delas, com o alcance que tiveram, o fôlego que tiveram no contexto de inserir a psicanálise no Brasil, de pautar a psicanálise dentro do ambiente da saúde mental. Foi muito maravilhoso esse aprender com o trabalho delas”, registra Gabriela, a intérprete de Virgínia.

Sophie assina embaixo, agradecida aos diretores Jorge Furtado e Yasmin Thayná por poder fazer parte do que ela chama de “missão social e histórica”. “Como a gente não conhecia, todos nós sentimos um chamado para contar essa história tão fascinante. Nem sempre a gente tem esse privilégio de poder conhecer um filme que vem como uma missão social e histórica. A gente também está fazendo um documento, algo para ficar e para atravessar muita gente”, vaticina a atriz de "Meu Nome é Gal".

Um dos aspectos mais interessantes do filme são as camadas de discussão que apresenta, primeiramente colocando em comparação as vidas de Virgínia – uma filha de negro beneficiado pela Lei do Ventre Livre, no século anterior, e que sofre todo tipo de discriminação para poder trabalhar com saúde pública – e Adelheid, judia alemã que foge da ascensão nazista em Berlim, encontrando refúgio no Brasil. Ambas são mulheres perseguidas pelo contexto histórico-social e que se fortalecem nessa amizade.

A outra camada põe o filme em contato com a realidade atual, como frisa Sophie. “Tenho uma admiração já muito longa pelo Jorge. Ele é um grande diretor e roteirista. Ele já está neste processo do filme há algum tempo. O filme já tem um tempo no imaginário dele, e você vê a força do artista em apontar o futuro, ao contar uma história da década de 30, 40, dessas duas mulheres, que aponta absolutamente para o presente, lançando luz para muitas questões que a gente não resolveu ainda”, comenta.

Para a atriz, que tem origem alemã (nascida em Hamburgo, veio para o Brasil aos 7 anos), “a arte realmente lança luz sobre questões que, às vezes, nem os estudiosos conseguem prever, mostrando uma antena muito aguçada”, classificando o filme como “absolutamente contemporâneo e importante”. Gabriela, por sua vez, sublinha a importância da questão de gênero, dizendo que gosta de imaginar o feito de Virgínia e Adelheid como fruto de um movimento de mulheres em um processo histórico.

“E quando as mulheres se movimentam, elas apontam para onde é o futuro, onde pode e deve ser o futuro. No caso delas, realmente elas não só apontaram para onde deveríamos caminhar, enquanto pessoas que buscam a análise, mas também por quem busca mudanças, revoluções...”, analisa Gabriela. Jorge Furtado explica que a história mostrada em seu filme “é muito atual, de muitas maneiras”. A começar pelo cenário político, já que as personagens viviam num país onde o presidente (Getúlio Vargas) flertava com o fascismo.

Vargas inicialmente se pôs do lado de alemães, italianos e japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, tendo que mudar o seu apoio posteriormente devido à pressão dos Estados Unidos. “Estamos vivendo aquele momento em parte ainda, dentro de uma radicalização, de gente flertando com o autoritarismo. São (momentos) muito parecidos”, pondera o cineasta gaúcho, frisando que o que Virgínia pregou, como socióloga primeiramente e depois como psicanalista, é cada vez mais atual.

“Ela foi, talvez, a primeira pessoa a falar para o mundo acadêmico que existia racismo no Brasil. Ela desafiou um conceito que se tinha na época de que o Brasil não tinha racismo. O que existiria é um preconceito de classe, não de cor. Ela foi a campo e publicou sua tese, dizendo que existia, sim. Só que depois ela foi buscar outro caminho ainda, que foi o da psicanálise. A trajetória dela é de uma riqueza absoluta e a gente precisa entender como aconteceu isso, que mulher era essa e que mulheres eram essas”, pondera.

O diretor cita o jornalista Raimundo Pereira, para quem uma pesquisa faz lançar um novo olhar sobre o que passou. “Um filme como o nosso reorganiza o passado, e a gente passa a pensar no passado de outra maneira, iluminando o presente”, analisa. Além da importância histórica e social do filme, Furtado também pôde experimentar, no limite de seu orçamento apertado, a própria linguagem cinematográfica, ao, por exemplo, dividir a tela, colocando as duas personagens juntas enquanto uma fala e a outra escuta.

“O filme tem um negócio que acho muito bonito, que é a possibilidade de olhar para quem escuta. Isso é tão raro. Na TV, isso não há – sempre a câmera está em close na pessoa que fala. Ninguém escuta, todos só falam. O que é um símbolo de nossa época, com muita gente escrevendo e falando e escutando pouquíssimo. E a psicanálise é exatamente o espaço da escuta. Quando se faz essa divisão na tela, o espectador pode escolher olhar para quem escuta e ver como a fala é ouvida. Essa é uma riqueza que o cinema tem”, congratula-se.