Vilma Eid lembra com precisão a primeira vez que se sentiu arrebatada pela arte. Corria o ano de 1971 e, levada pela mãe para uma visita a uma galeria paulistana, ainda menina, teve os olhos fisgados por um quadro de dois bois sobre uma relva. A obra era de José Antônio da Silva, artista que mais tarde viria a ocupar um lugar central em sua coleção. “Me apaixonei por aquele quadro, sem saber quem era o artista. Mas minha mãe e o galerista me desaconselharam a comprar. Disseram que ele era um primitivista, como se chamava o que hoje lemos como arte popular, e que não sabiam se ele iria ‘dar certo no mercado de arte’, então era melhor escolher outra coisa”, recorda a galerista e colecionadora.

À época, ela cedeu e escolheu outra peça, mas aquela imagem não saiu de sua cabeça. Anos depois, como sócia da galeria Paulo Vasconcelos (que encerrou suas atividades na década de 1990), reencontrou o nome e o trabalho do artista, descobrindo que ele morava em São Paulo. Começou a frequentar seu ateliê, conversar com ele, comprar suas obras — algumas das quais ainda permanecem com ela. “Os trabalhos dele são os mais numerosos da minha coleção. Ao longo desses 40 anos, fui comprando toda vez que eu podia e encontrava algo muito bom”, relata.

Essa relação estreita, construída com o autor da obra que primeiro lhe encheu os olhos, é alegórica da forma como Vilma compreende o colecionismo de obras de arte. Com frequência, ela construiu vínculos com artistas, em um movimento de aproximação, que, portanto, extrapola o convencional elo entre colecionador e o objeto colecionado. E essa é uma das forças estruturantes da exposição “Em cada canto: Casa Fiat de Cultura e Instituto Tomie Ohtake visitam Coleção Vilma Eid”, aberta em Belo Horizonte nesta terça-feira (17 de junho). A mostra, que reúne cerca de 300 obras de 100 artistas – uma das maiores, em número de obras, já recebida pelo equipamento cultural mineiro –, apresenta um panorama de produções que atravessam a arte popular, moderna e contemporânea e tem curadoria de Ana Roman e Catalina Bergues.

Revisto de hoje, esse cuidado de Vilma com os artistas de seu interesse se prova um elemento fundamental para a conservação de seus trabalhos, memórias e histórias. Vale lembrar: nomes hoje consagrados, como o do cearense Leonilson, que tem um trabalho exibido na exposição, só tiveram sua obra preservada por esforço de amigos e familiares, enquanto outros tantos, como a baiana Madalena Santos Reinbolt, que tem duas peças expostas, não contaram com essa estrutura, tornando mais difícil a recuperação dos seus trabalhos e a reconstrução de sua biografia. Assim como nestes dois casos, muitos daqueles que Vilma Eid se aproximou também só foram ser reconhecidos mais recentemente, de forma que, sem o intermédio dela e sem uma rede de apoio, seria mais difícil reconstituir, de maneira tão ampla, os legados que deixaram.

Conjunto de obras de Mirian Inêz da Silva Cerqueira disposto da mesma maneira que estava na casa de Vilma Eid | Crédito: Alex de Jesus/O TEMPO

E a colecionadora e galerista, hoje à frente da Galeria Estação, em São Paulo, leva a sério o trabalho de preservação e compartilhamento. “A tela não pode estar craquelada; a coleção precisa estar em ordem, limpa, catalogada”, examina, acrescentando que emprestar as obras para exposições públicas é também uma maneira de tornar o colecionismo um gesto coletivo – “se não vira uma coisa muito privada, que só o dono vê, ou os amigos convidados”, opina.

Além de ser resultado desse consciente trabalho de conservação, que surge investido de intimidade na mostra – inclusive, recriando ambientes da casa de Vilma, de onde a maior parte das peças agora expostas saíram –, “Em cada canto” propõe ainda um encontro entre diferentes tempos, poéticas e regionalidades, desafiando as classificações rígidas que historicamente separaram o “popular” do “erudito” ou o “espontâneo” do “crítico”. Esse tensionamento também tem muito a ver com a visão da colecionadora sobre a arte. Para ela, as obras, das mais variadas vertentes, escolas e linguagens, podem e devem conviver, lado a lado, sem hierarquia. “Eu não coloco arte em gaveta. Arte é arte”, afirma, inteirando ter como guia apenas a própria intuição: “Se eu gosto, cabe em casa e no bolso, eu compro”. A construção da coleção, portanto, se deu de maneira orgânica, “democrática”, como prefere dizer.

Obras em diálogo

Na Casa Fiat de Cultura, a mostra baseada na coleção privada de Vilma Eid é apresentada em dois pisos, com a visitação se iniciando no terceiro e sendo concluída no quarto andar. “É raro ter a chance de ver uma coleção inteira, de modo tão generoso. Normalmente, as obras aparecem em exposições temáticas, isoladas. Aqui é diferente: conseguimos mostrar os vínculos que existem entre elas”, explicam as curadoras Ana Roman e Catalina Bergues.

Elas detalham que a expografia, em alguns momentos, evoca o ambiente doméstico, da casa da colecionadora, ao mesmo tempo que se aproveita da amplitude das galerias, evitando fechar obras em salas e investindo em vãos, por onde o olhar escapa e atravessa, possibilitando a convivência entre as obras, mesmo aquelas que estão em núcleos distintos. “Não é sobre encaixotar ou separar, mas sobre tensionar o olhar. A ideia é olhar para a história da arte a partir de diagonais, cruzamentos, vazamentos entre linguagens e contextos”, examina Ana, reforçando que uma das propostas centrais da mostra é a promoção de uma reflexão crítica sobre as categorias que historicamente moldaram a compreensão da arte brasileira.

Ao fundo, a série de quadros de Alcides Pereira dos Santos centrados na representação de aviões | Crédito: Alex de Jesus/O TEMPO

“O uso do termo ‘popular’ costuma vir carregado de condescendência. Como se houvesse menos elaboração, menos intenção. O que, definitivamente, não é o caso. Quando você olha com atenção para artistas como José Antônio da Silva, vê uma postura crítica muito forte, inclusive em relação ao sistema da arte”, pontua Catalina. O próprio artista, que participou de algumas edições da Bienal de São Paulo, não se esquivava desse debate – e de outros tantos. Consciente da forma como era visto pelos críticos, escreveu em um dos trabalhos que integram a mostra: “Sou analfabeto por fora”.

“Ele sabia o lugar que ocupava e questionava esse lugar”, destacam as curadoras.  “Ele é um artista que teve postura crítica, inclusive com o próprio sistema da arte. E tem trabalhos muito duros, como o que mostra um capataz branco com chicote em meio a trabalhadores negros. Não dá para ignorar essa força”, observa Catalina.

Embaralhando classificações

A exposição prossegue, a todo momento, embaralhando classificações: a abstração geométrica de Judith Lauand aparece ao lado da abstração lírica de artistas tidos como populares; as totens de Conceição dos Bugres convivem com esculturas de Sérgio Camargo; a espiritualidade de Rubem Valentim encontra eco em Mira Schendel. Há um painel inteiro dedicado a José Antônio da Silva.

Algumas paredes reproduzem exatamente o arranjo das obras na casa da colecionadora, como uma onde trabalhos de Leonilson, Judith Scott e Itamar Julião dividem o mesmo espaço.

Peças do Mestre Vitalino que reproduzem cenas do cotidiano sertanejo, além de representar ofícios | Crédito: Alex de Jesus/O TEMPO

Há espaço também para a escultura popular em madeira, como as torres de Arthur Pereira e carrancas navegadas que fizeram parte de embarcações no São Francisco. E para trabalhos delicados como os de Madalena Santos Reinbolt, com tapeçarias e pinturas sobre sacos de batata, que narram Salvador em tons de cidade alta e baixa. Como explicam as curadoras, a ideia é dar visibilidade a poéticas individuais, a cada “canto” dos artistas. Não à toa, o título da mostra remete tanto à estrutura da casa quanto à singularidade de cada obra.

Subjetividade

A atenção à subjetividade, essencial para a constituição da coleção de Vilma Eid, se estende também ao olhar curatorial, que opta por destacar artistas racializados, mulheres invisibilizadas, nomes esquecidos ou marginalizados, e também nomes fundamentais como Mira Schendel, Tomie Ohtake, Ione Saldanha, Maria Auxiliadora, Zica Bergami e Suane – esta última, uma artista que se afirmou como popular, apesar de transitar no circuito contemporâneo e ser tia do artista Tunga. “Tem algo de político nesse gesto de juntar tudo isso sem hierarquizar”, afirmam as curadoras.

Há momentos de pura fabulação, como nas paisagens sinfônicas de Júlio Martins ou nos aviões do Alcides, que trazem à mostra uma dimensão quase pop – mas também espiritual, segundo sua própria visão sobre tecnologia e transcendência. Há investigações sobre cor e luz, como nas pinturas vibrantes de Ranchinho, que se dizia o Van Gogh brasileiro. E há delicadezas como os “biscoitos de mãinha” de Marepe ou as cabeças totêmicas de Conceição dos Bugres. “As esculturas da Conceição eram pessoas para ela. Ela dizia que eram amigas. Usava cera de abelha porque sonhou com isso. Tem uma dimensão espiritual que atravessa os trabalhos”, conta Ana Roman.

Minas em cada canto

Minas Gerais é um território recorrente na exposição “Em cada canto: Casa Fiat de Cultura e Instituto Tomie Ohtake visitam Coleção Vilma Eid”, que apresenta obras de diversos artistas mineiros – expressão da relação pessoal e afetiva de Vilma com o Estado.

Entre os destaques está GTO (Geraldo Teles de Oliveira), de Divinópolis, cuja obra é marcada por esculturas de caráter espiritual, com engrenagens e rodas da vida que tensionam os ciclos humanos e o transcendental. Seu trabalho aparece na mostra em diálogo com o de Jadir Egídio, também de Divinópolis, que viu o trabalho de GTO e desenvolveu, a partir dele, uma linguagem própria – mais totêmica e ascensional, quase bíblica. “Parece que os homens empilhados querem chegar ao céu”, comentam as curadoras, referindo-se às grandes colunas humanas que Jadir esculpia.

Outro nome mineiro presente na mostra é Arthur Pereira, escultor de Tiradentes, conhecido por suas obras talhadas em troncos únicos de madeira, muitas vezes escavados por dentro. Uma de suas peças presentes na mostra traz uma espécie de torre com três bois esculpidos internamente, como se estivessem confinados no interior da árvore – ele precisava se projetar dentro daquela estrutura para esculpir os animais. “Esses animais não são só representação. Há uma dimensão de espiral da vida nessas figuras”, explica Ana Roman.

Já as ceramistas do Vale do Jequitinhonha, como Noemisa Batista e Dona Izabel, aparecem com cenas do cotidiano e da religiosidade popular – como batizados, festas e rituais –, tudo com a pintura característica da região, feita com pigmentos naturais.

Um dos trabalhos da ceramista Noemisa Batista dos Santos, do Vale do Jequitinhonha, que integra a coleção de Vilma Eid | Crédito: Alex de Jesus/O TEMPO

Mais um mineiro com obras na mostra é Lorenzato – coincidentemente, há uma exposição individual do artista atualmente em cartaz no Palácio das Artes. Com sua pintura de texturas e cores sobrepostas, ele representa, nas telas que integram a exposição “Em cada canto”, paisagens em composições que dispensam a tridimensionalidade, construindo uma profundidade não pela perspectiva tradicional, mas pelo acúmulo de camadas cromáticas. Na Casa Fiat de Cultura, seu trabalho é posto em diálogo com artistas como Lory Cöell, apontada como discípula de Volpi, e Júlio Martins, que fabula jardins impossíveis.

Em entrevista a O TEMPO, aliás, Vilma reforça como devota a Minas um olhar de intimidade. Ela lembra com carinho de Celma Albuquerque, pioneira do mercado de arte em Belo Horizonte, cuja galeria também era um antiquário. “Me espelhei muito nela. Sempre que queria vender alguma coisa, me procurava. Comprei muitas obras da coleção dela com muita alegria”, conta. A relação se estende também à colaboração com Jeanette Costa na montagem do Centro de Arte Popular da Praça da Liberdade. Não por acaso, a colecionadora se diz especialmente emocionada com a chegada da mostra à capital mineira: “Tenho muitos amigos aqui. E acho muito importante que essa exposição, que tem tantos artistas mineiros, seja vista pelas pessoas daqui. É uma forma de devolver também um pouco do que Minas me deu”, celebra.

SERVIÇO:
O quê. Exposição 'Em cada canto: Casa Fiat de Cultura e Instituto Tomie Ohtake visitam Coleção Vilma Eid'
Quando. Abertura nesta terça (17), a partir de 10h. Até 17 de agosto. Visitação de terça a sexta, das 10h às 21h; sábados e domingos, das 10h às 18h.   
Onde. Casa Fiat de Cultura (praça da Liberdade, 10, Funcionários)
Quanto. Gratuito