Em um texto sobre a relação com Baden Powell, Vinicius de Moraes conta que conheceu o violonista numa boate no Rio de Janeiro. Na ocasião, no começo dos anos 1960, o músico estava tocando uma guitarra que, para o Poetinha, não devia nada aos jazzistas que ele ouvira nos Estados Unidos.

Os dois combinaram de se ver novamente. "A partir daí, o menino de Varre-Sai não saiu mais do apartamento onde eu morava, no parque Guinle", escreve Vinicius. "Nos tornamos íntimos amigos, sem reservas nem segredos um para o outro. Duvido que haja na MPB uma parceria que tenha feito tanto em tão pouco tempo."

O texto, lido por Georgiana de Moraes, filha de Vinicius, é um dos atrativos de "Os Afro-sambas: O Brasil de Baden e Vinicius", documentário lançado pela HBO Max nesta terça-feira (24) - ainda que esta seja uma versão mais próxima daquilo que o jornalista Ruy Castro cataloga como uma das lendas da bossa nova em seu livro "Chega de Saudade".

Segundo o escritor, na verdade, os dois se conheceram em 1962, por meio do empresário Nilo Queiroz. Após ouvir Baden a noite inteira no apartamento de Queiroz, Vinicius convidou-o para uma parceria.

Seriam, então, quase três meses trancados no apartamento do poeta, regados a 20 caixas de uísque Haig, num total de 240 garrafas, que resultaram em 25 canções - muitas das quais estariam, só quatro anos depois, no disco "Os Afro-sambas de Baden e Vinicius", um marco de música brasileira.

Para Renata Leite, produtora da Rinoceronte, que realizou o filme, uma das forças do documentário é abrir espaço para histórias paralelas relacionadas ao disco. Há depoimentos de músicos de novas gerações, como o líder do BaianaSystem, Russo Passapusso, e o guitarrista Kiko Dinucci, e de personagens menos conhecidos, caso de Meira, o professor de violão de Baden.

Silvia Powell, viúva do violonista, conta que ele tocava profissionalmente desde os 15 anos para ajudar a família com dinheiro. O professor, ela diz, jogava o pupilo "na fogueira", no caso rodas de choro com gente como Pixinguinha, para que ele aprendesse tocando.

O filme retrata a expansividade no jeito de Baden tocar. Para Dinucci, além da técnica, seu violão era sujo e rock 'n roll, com a sexta corda em ré e uma pegada percussiva. Roberto Menescal desenvolve uma teoria de que a bossa nova era suave porque foi criada em apartamentos, com os vizinhos reclamando do barulho. "Baden não podia tocar nesses apartamentos", diz. "Ele tocava forte."

O documentário posiciona "Os Afro-sambas" como uma ruptura com a bossa nova, ainda que as duas mentes por trás dele tenham sido ícones do gênero. Eles até tinham influências do estilo - Marcos Valle, por exemplo, nota uma sugestão harmônica típica da bossa nova em "Canto de Ossanha" -, mas juntos criaram algo diferente.

Quem conta sobre a aproximação de Vinicius com o candomblé é Maria Bethânia, que conheceu Mãe Menininha do Gantois através do Poetinha - ele era amigo da mãe de santo. Gessy Gesse, baiana que foi a última mulher do compositor, com quem se mudou do Rio para a famosa casa em Itapuã, em Salvador, também relata o interesse dele pela cultura afro-baiana.

"Vinicius nunca participou de uma festa dentro do Gantois, nunca foi a um ritual dentro", ela diz no longa. "A paixão dele era ver Mãe Menininha. Dele só, não - de [Dorival] Caymmi e Jorge Amado. Pareciam três adolescentes que iam no fim da tarde sentar no terreiro conversar com ela."

Emílio Domingos, diretor e roteirista, diz que o filme mostra "uma relação do Vinicius com a cultura negra que já era histórica, de interesse real e legítimo". "Ele vai morar na Bahia, muda o rumo da vida, vai ao Gantois. Acho que não é uma onda ou modismo. Me parece que realmente ele queria sair daquele universo do Itamaraty e viver isso."

Os próprios Baden e Vinicius contam em entrevistas antigas que começaram a fazer os afro-sambas, ainda sem esse nome, a partir do som do berimbau. A música que saiu dessas pesquisas, "Berimbau", de 1962, foi o pontapé criativo da dupla.

No texto em que fala sobre a parceria, Vinicius conta que ele e Baden ficaram "siderados" pelo disco "Sambas de Roda e Candomblés da Bahia". Baden, que já tinha certo conhecimento dos terreiros da Baixada Fluminense, começou a viajar a Salvador. Ele, escreve o poeta, voltava "inteiramente tomado pelos cantos e ritos dos orixás e me explicava horas seguidas os fundamentos da mitologia afro-baiana".

Domingos diz que uma das intenções do documentário é mostrar o quanto houve um "trabalho muito sério de pesquisa de Baden e Vinicius". "A gente traz o Alfredo Bessa, que era o percussionista do disco. A gente joga luz sobre ele, porque ele traz essa musicalidade e os toques do terreiro. O Baden traz isso no violão, mas o Alfredo é uma figura pouco conhecida."

Um dos recursos usados por Domingos é sobrepor músicas de "Afro-sambas" a um atabaque tocado por Gabi Guedes, percussionista e alabê do Terreiro do Gantois. Um toque para reverenciar Xangô, por exemplo, se funde ao "Canto de Xangô" de Vinicius e Baden na edição do filme.

Há um momento de fricção no documentário, quando é citada a crítica negativa feita por José Ramos Tinhorão ao disco. Mas o filme não entra em discussões mais polêmicas como as de apropriação cultural. O compositor e pesquisador do samba Nei Lopes, por exemplo, já disse à Folha que não vê africanidade nas melodias de Baden e que Vinicius fez letras de "macumba para turistas".

"Não vejo só como apropriação, vejo como admiração", afirma o diretor. "O próprio Vinícius quando fez o [filme] 'Orfeu Negro' já mostrava isso, ou quando se torna amigo de Ismael Silva. Acho que faz parte de uma admiração profunda pela cultura negra. E o Baden era uma pessoa negra, né? Não vejo ele como apropriador de nada, acho que estava falando da própria cultura."

Uma parte do documentário é dedicada à pequena gravadora Forma, pela qual o disco foi lançado. Outra trata das gravações, regadas a uísque e cigarro, feitas num estúdio inundado pelas chuvas, tudo sem ensaio prévio e com vocais de apoio propositalmente desafinados.

"São dois grandes artistas, dois gênios que gravam sob condições adversas", diz Domingos. "Eles experimentam muito, desenvolvem um processo longo de parceria e imersão. E correm riscos. Eles não estavam agradando ao mercado, fazendo algo que iria vender muito, ser um sucesso. Estavam ali pela atração pela cultural brasileira, pelo universo afro-brasileiro."

"Os Afro-sambas: O Brasil de Baden e Vinicius"

- Quando: Lançamento nesta terça-feira (24)
- Onde: HBO Max
- Classificação Livre
- Produção Rinoceronte Entretenimento
- Direção: Emílio Domingos