OURO PRETO - Anna Muylaert encerrou há poucos dias as filmagens de “Geni e Zepelim”, longa-metragem baseado na famosa música homônima de Chico Buarque que teve que, rapidamente, mudar a escalação da protagonista, trocando uma atriz cis por uma transgênero após críticas da comunidade LGBTQIA+ nas redes sociais. Uma das convidadas da Mostra de Cinema de Ouro Preto, que acontece até segunda-feira (30) na cidade histórica, a cineasta comentou o episódio durante debate com a homenageada Marisa Orth, defendendo a sua posição inicial, quando convidou Thainá Duarte para o papel.
“Eu, como artista ou mesmo como pessoa, um personagem de ficção é um personagem de ficção, mas em alguns momentos da História, um personagem de ficção, como é o caso de Geni, é identificado por um certo núcleo como uma espécie de Santa Bárbara, um ícone. Ao se mexer nesta identidade, as pessoas ficaram feridas, de verdade. Eu tive reuniões com pessoas que estavam tomando calmantes porque uma cineasta escolheu uma Geni cis. Então fomos atrás de uma Geni trans”, registra Anna, que convidou Ayla Gabriela para personificar a prostituta trans hostilizada em sua cidade.
“Já tinha feito alguns testes e encontramos a Ayla. Ela fez um reteste e, com apenas uma conversa, vimos que ela é deslumbrante. Só a magia explica, porque, se eu tivesse escolhido uma trans desde o começo, certamente seria uma trans famosa. Ninguém aceitaria uma que não fosse conhecida. Mas como foi emergencial, disseram que poderia ser ela. Acho que ficou (uma escolha) muito mais redonda em relação à forma como o debate foi encaminhado e nos levou à essa conclusão. Mas para sempre vou achar que úm personagem de ficção pode ser o que o autor quiser naquele momento”, assinala.
As palavras da diretora ganham apoio de Marisa Orth, que revelou que sempre teve vontade de interpretar uma trans. “Eu, como atriz, sonhei um dia fazer uma trans. Eu, como uma mulher cis, queria fazer um homem que virou mulher. Seria um desafio como atriz”, lamenta a atriz, que recebeu, na noite de quinta-feira (26), em solenidade na Praça Tiradentes, o troféu Barroco pela carreira. Antes, no debate, ela também falou sobre influencers estarem se lançando na dramaturgia. “Não sou radical não, amiga. Quem decide isso é o público, porque se a pessoa não tem competência, não se estabelece”.
“Eu tenho escola, mas num país que tem tão pouco acesso ao estudo, você acaba cortando muita gente se for falar que só entra quem tiver estudo. Todas as áreas estão sofrendo com essa coisa do influencer, porque entrou na internet, que é uma nova prensa de Gutemberg. É um outro veículo, que provocou muita mudança. Mas o público não é enganado. Pode entrar uma vez, mas, se for ruim, o público devolve a oferenda. O fato é: estuda, se tiver essa chance. Nunca é ruim”, registra Marisa, que ouviu de Anna Muylaert um grande elogio à profissão de atuação.
“Eu admiro muito a profissão de atriz e ator. Eu, como diretora, vejo muito a exposição que é o corpo. Fico anos elaborando o roteiro, tendo a condição de me preparar. Já o ator chega lá (no set) e plá, é a carne em cima da mesa. E eu sei o quanto isso é difícil, com um nível de exposição em que um erro ou acerto fica ali, a 24 quadros por segundos”, analisa a cineasta, que trabalhou com Marisa em “Durval Discos” e em suas primeiras experiências com o audiovisual. “(Ser ator) Tem a ver com martírio, que palavra que vem de mártir”, completa a intérprete de Magda no humorístico “Sai de Baixo”.
(*) Repórter viajou a convite da organização da Mostra de Cinema de Ouro Preto