Desde a infância em Salvador, Raul Seixas queria ser famoso. Leitor voraz de filosofia e apaixonado por cinema, encontrou na música – especialmente no rock – o meio de realizar seu plano. Era tão bom ator que fingiu ser cantor e compositor e todo mundo acreditou, como disse certa vez. Misturou, em sua antropofagia única, Elvis e Luiz Gonzaga, anarquizou a música popular brasileira, colocou, com rebeldia, inteligência e humor, o dedo nas feridas nacionais e, sem fazer concessões, ousou imaginar uma sociedade sem fronteiras e governos.

Neste sábado (28), ele completaria 80 anos. A obra do Maluco Beleza, morto em agosto de 1989 aos 44 anos, segue viva, relevante e atravessando gerações com o frescor e a vitalidade de quem sempre tem uma novidade para contar e um novo mundo a descortinar.

Baiano que não andava com os conterrâneos da MPB, roqueiro que ridicularizava o rock brasileiro dos anos 1980 e desprezava a bossa nova, Raul foi essencialmente um outsider – contestador de todas as regras, subverteu-as para criar seu próprio manifesto libertário e encontrou uma legião que continua se identificando com o seu discurso atemporal.

Companheira de Raulzito entre 1979 e 1985, Kika Seixas ainda se impressiona com a longevidade e o sucesso inabalável do cancioneiro raulseixista. “Ele dizia para mim, sem arrogância nenhuma, que tinha certeza de que não iria morrer, de que sua obra permaneceria eterna. E aí está”, diz.

Autor de canções que se transformaram em hinos inabaláveis e álbuns que resistem à passagem do tempo, Raul lançou, de 1968, com “Raulzito e Os Panteras”, ao derradeiro “Panela do Diabo”, em 1989, dezenas de álbuns, sustentados por sucessos igualmente duradouros.

Para o jornalista e escritor pernambucano Rogério Medeiros, autor de “Eu Sou, Eu Fui, Eu Vou – Uma Biografia de Raul Seixas”, lançado em abril, a idolatria ao artista nunca deixou de existir muito em função de um certo magnetismo que caracteriza as canções do artista. 

“Ao falar muito de si, e ao mesmo tempo se colocar em diálogo com o ouvinte, que pensa, reflete e participa, ele conseguiu ser popular, atingir as massas e fazer uma música que grudasse no ouvido das pessoas. Raul chega aos 80 com muito fôlego e força”, pondera o escritor.

Fã do baiano desde criança, o ator Ravel Andrade, que vive o compositor na série “Raul Seixas: Eu Sou”, cujos oito episódios já estão disponíveis no Globoplay, também enxerga esse vigor na música de Raul: “A obra dele nunca vai envelhecer. Ele tinha um grito de liberdade e isso é completamente atual para os tempos de hoje e os tempos futuros”.

Mensageiro popular

Marco Mazzola esteve ao lado de Raul Seixas em momentos cruciais da carreira do artista. Ao todo, Mazzola produziu seis discos de Raul Seixas, incluindo a trinca “Krig-ha bandolo” (1973), “Gita” (1974) e “Novo Aeon” (1975). No mercado fonográfico brasileiro, o carioca talvez seja a pessoa que melhor pode falar sobre o baiano.

Além da criatividade e da originalidade características do roqueiro, Mazzola enxerga outro aspecto que faz com que Raul Seixas seja ainda tão onipresente no nosso dia a dia: uma apurada sensibilidade para conseguir capturar ouvidos e mentes de gerações tão diversas há mais de meio século em todos os cantos do país.

“Ele queria melodias e harmonias mais simples possíveis para poder ressaltar o conteúdo e as mensagens das letras. ‘Se eu ficar fazendo acordes de bossa nova, as pessoas não vão prestar atenção na minha letra’, ele me dizia. Eu encaro o Raul como um inventor de música. Ele parece estar vivo”, define Mazzola.

Deslocamento

O compositor, produtor e vocalista do Barão Vermelho, Rodrigo Suricato, desde muito cedo se interessou pelo deboche e pela ironia presentes nas canções de Raul. Ao se aproximar da obra do cantor, Suricato encontrou uma paisagem sonora simples, com poucos acordes, que acabou por evidenciar o conteúdo das letras do baiano, facilmente assimiláveis.

“Acredito que o refinamento do Raul esteja no próprio Raul, uma figura forte e complexa que conseguia sustentar seu discurso através de uma performance encantadora”, destaca.

Ao contrário do que acontece com os medalhões octogenários da MPB, que pisam em solo fértil de representantes de seus legados, Suricato avalia que, embora permaneça relevante e atemporal, “um artista como Raul Seixas é algo impensável para os dias de hoje”. O músico adoraria que o deboche e o sarcasmo típicos do Maluco Beleza também caracterizasse os novos artistas.

“Mas vivemos em outro tempo. Se estivesse vivo, tenho certeza de que ele já teria sido cancelado algumas vezes”, comenta o Suricato, que emenda: “Para mim, a obra do Raul chega aos 80 com sensação de deslocamento, num país assumidamente conservador e menos tolerante à ironia, à poesia e à autenticidade”.