“Superman” inicia uma nova era dos super-heróis nos cinemas. Aquela carga de fragilidade e ambiguidade tão presente nos salvadores do planeta nos últimos dez anos, marcados por neuroses e obsessões que os deixaram quase lado a lado de seus principais antagonistas, agora dá lugar a uma grande preocupação com o outro. O Homem de Aço que chega hoje às telonas, em mais uma tentativa de reboot, é um altruísta.

Ele nos lembra o Superman de Christopher Reeve, apresentado no final da década de 1970, mas num contexto bem diferente daquele, em que os Estados Unidos pareciam escorraçados após a campanha militar vexaminosa no Vietnã e a renúncia do presidente Richard Nixon, quando o país precisava urgentemente de modelos de bons samaritanos – o que também abriu caminho para o jedi Luke Skywalker, de “Star Wars”.

Sob a batuta de James Gunn (“Guardiões da Galáxia”), o Superman de David Corenswet surge à luz do governo Trump, em que valores e narrativas são distorcidos a ponto de se discutir, após o filho de Krypton salvar, sem provocar nenhuma morte, milhares de habitantes de um país que seria invadido por um vizinho mais poderoso, se sua atitude teria sido correta. Como residente nos EUA, ele não teria sido autorizado para tal.

A discussão passa a ser essencialmente política. Embora não apareça nenhum presidente em cena, a compreensão deste novo “Superman” atravessa muito a questão da centralidade decisória – seja ela democrática ou não – da força das redes sociais e também da imigração, tão em voga atualmente no país do Tio Sam. Nesta perspectiva, o Superman é tratado como alienígena (não por acaso, termo usado para imigrantes ilegais).

Não importam os muitos anos dedicados a enfrentar toda e qualquer ameaça ao país. Bastou interferir num assunto que envolve interesses políticos e econômicos (como uma duvidosa venda de armamentos), numa região rica em petróleo, para Superman ser “cancelado” – o que não é força de expressão, já que o grande vilão Lex Luthor comanda uma rede de primatas que despeja ódio nas redes.

As leituras são múltiplas, desde a influência de Luthor, a princípio um megaempresário disposto a realizar o livre comércio (desde que ninguém se interponha em seu caminho), até a guerra entre Rússia e Ucrânia. Quando uma criança de Jarhanpur – o país a ser invadido pela Borávia – levanta uma bandeira com o símbolo de Superman, fica evidente o desejo não de uma intervenção, mas sim do que Superman representa, como sinônimo de esperança e moralidade.

Quando o super-herói discursa para dizer que é mais humano do que um kryptoniano, nas entrelinhas podemos entender que ele se afirma mais como americano do que imigrante, numa cena que, logo depois, é sustentada pelas imagens dos pais do herói (não os biológicos, mas sim os que o criaram e ajudaram a fazê-lo entender que sua força deve ser utilizada para o bem). O indiano Mali, que vende falafel nas ruas de Metrópolis e se sacrifica por Superman, adensa essa mensagem pró-imigração.

Mas todo esse cenário, assim como visto no “Superman” de 1978, não torna a narrativa mais pesada ou reflexiva demais. O contexto serve para mostrar o quanto os valores do dono da capa vermelha ainda são imprescindíveis (e raros), num mundo cada vez mais individualista e manipulado pela internet. O novo Homem de Aço renova o que, até bem pouco tempo atrás, parecia presunçoso e irreal, na busca por altruísmo.

Quando ele resolve se entregar para as autoridades é porque deseja saber o paradeiro de seu cachorro – o Super Cão, que podemos definir como a maior novidade desse reboot. O que poderia ganhar um resultado risível tem um bom desenvolvimento – e sim, divertido, já que o gracejo é uma das marcas registradas de Gunn. Com “Guardiões da Galáxia”, foi mais fácil introduzir humor, já que fazem parte do segundo time da galeria de heróis da DC Comics.

Superman é uma instituição dos quadrinhos, talvez o maior de todos os super-heróis. E Gunn não poupa humor, especialmente em relação aos futuros colegas de Liga da Justiça, que repetem a troca de sarro comum entre Groot, Drax e Rocket, do grupo de mercenários de Peter Quill. Tanta piada tem um preço: será impossível ver um filme sério como Lanterna Verde novamente. Pelo menos por enquanto, Batman e Mulher Maravilha se salvaram.

E, como não há filme de super-herói que preste sem um bom vilão, o destaque de “Superman” é Nicholas Hoult, na pele de Lex Luthor. Sem ser exagerado, ele não deixa nada a dever a Gene Hackman. E a Lois Lane de Rachel Brosnahan deixa de ser a companheira arrogante para vivenciar uma relação cheia de DRs com o alter ego de Superman – o “modo” Clark Kent, por sinal, pouco aparece no filme.

Todos esses ingredientes reunidos, com a adição de universos paralelos (hoje quase uma obrigação em filmes da DC e da Marvel) e bons efeitos especiais, vão fazer de “Superman”, possivelmente, a maior bilheteria do ano – e talvez uma das maiores de todos os tempos. Para quem se sentia viúvo do Superman de Christopher Reeve e Richard Donner (diretor da produção de 1978), não há por que se lamentar mais, já que Gunn se revela um fã dos primeiros voos desse imigrante intergaláctico.