Continuidade e renovação. Os dois substantivos, geralmente, não andam juntos e até soam paradoxais. Não para o Grupo Corpo, companhia mineira que há 50 anos conjuga habilmente essas duas frentes: de um lado, a permanência, com muitos bailarinos ocupando postos de coordenação e criação, numa valsa entre suas biografias e a trajetória do grupo; de outro, a formação de gerações de dançarinos a perder de vista e a constante porosidade para influências externas, escancarada pelas contribuições de dezenas de compositores populares que criaram trilhas para seus espetáculos.

Fundado como uma escola de dança em Belo Horizonte, o Corpo se projetou com “Maria, Maria”, seu primeiro balé, de 1976, com trilha de Milton Nascimento e Fernando Brant e coreografia de Oscar Araiz. A montagem percorreu 14 países e se manteve no repertório até 1982. Desde então, a companhia acumulou mais de 40 coreografias originais e passou por cerca de 250 cidades em dezenas de países. Consolidou-se com uma linguagem coreográfica própria, marcada por movimentos quebrados, rigor técnico e o gingado das culturas populares brasileiras, tornando-se uma das maiores companhias de dança contemporânea do Brasil.

Agora, a estreia de “Piracema” – em 13 de agosto, em São Paulo, chegando a Belo Horizonte no dia 27 do mesmo mês – marca as comemorações de cinco décadas, dividindo a temporada com a remontagem de “Parabelo”, balé emblemático do repertório. Peças que, por sinal, dialogam com esse padrão, entre a valorização da experiência coletiva, historicamente construída, e a ruptura, abrigando propostas de criação díspares, que caracteriza o ethos do grupo, como define o diretor artístico Paulo Pederneiras.

Cena de 'Piracema', novo espetáculo do Grupo Corpo | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação
Cena de 'Piracema', novo espetáculo do Grupo Corpo | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação

É uma celebração feita também de memória, revisitação e, como sempre, movimento. “Sempre se diz que o Corpo foi fundado por seis irmãos Pederneiras, mas foi muito mais que isso. Foi fundado por amigos”, corrige Paulo. “Claro, havia alguns Pederneiras, mas havia muitos companheiros e profissionais que começaram conosco e que têm uma importância igual, ou até maior, do que qualquer Pederneiras”, pondera.

“Nesse grupo fundamental tinha a Déa Márcia de Souza, que faleceu no ano passado, uma grande tristeza. A Miriam (Pederneiras) até hoje cuida da parte social, o Corpo Cidadão. A Marisa (Pederneiras) mora na Alemanha há muitos anos, mas mantemos contato. O Fernando de Castro dirige a Escola do Corpo. A Macau (Carmen Purri) também é diretora da escola. A Cristina Castilho é diretora de comunicação. O Pedro Pederneiras é diretor técnico, junto com o Gabriel, que também é Pederneiras. A Izabel (Costa, leia sobre ela na reportagem ‘A gênese do Corpo’) já saiu do Corpo há muitos anos. Talvez eu esteja esquecendo de alguém…”, destaca.

“É a ‘velha guarda’ do Corpo. Foi um trabalho muito árduo, mas com um empenho coletivo enorme. Claro que tivemos mil problemas, mas, o tempo todo, todas essas pessoas sempre se respeitaram muito”, complementa Rodrigo Pederneiras, coreógrafo residente da companhia desde os anos 1980.

Ele prossegue lembrando parceiros cruciais para os primeiros passos da companhia. “Com o (coreógrafo argentino) Oscar Araiz, eu aprendi muito. E com as pessoas da companhia dele também. A Bettina Bellomo deu aula para nós por anos. O ex-marido dela, Fred Romero, que foi bailarino do Alvin Ailey (grupo de dança moderna afro-americana), foi um grande professor, assim como o Hugo Travers”, reconhece. “Antes de formarmos o Grupo Corpo, o Oscar me convidou para dançar na companhia dele, em Buenos Aires. Morei lá por mais ou menos um ano. Quando voltei, o Paulo já estava organizando o Grupo Corpo. E, bom, deu no que deu”, recorda ele, que tinha 20 anos quando fez história com a companhia em “Maria, Maria”.

“Somos uma companhia que, ao longo dessa história, foi desenvolvendo um jeito de trabalhar. E foi isso que nos trouxe até aqui”, afiança Rodrigo.

Rodrigo, Cassi e Paulo (da dir. para esq.) na sede do Corpo | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação
Rodrigo, Cassi e Paulo (da dir. para esq.) na sede do Corpo | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação

Esse jeito tem a ver justamente com a permanência de parte do elenco original conjugada com a renovação contínua. “Claro que o Corpo se renova, e tem que ser assim. É natural, principalmente na área dos bailarinos. Já perdi a conta de quantas gerações passaram por aqui”, assinala Paulo. “O importante é o comprometimento genuíno. Todos têm. A maioria das pessoas que saem do grupo, que param de dançar, ainda mantém uma ligação forte conosco. O Corpo continua sendo uma referência de vida para elas. E muitas outras assumem outros cargos”, orgulha-se Paulo, que considera todos parte da mesma família.

De fato, a própria Cassi Abranches, que assina ao lado de Rodrigo, seu sogro, a coreografia do novo espetáculo, “Piracema”, foi bailarina do grupo e agora retorna como coreógrafa residente. Outro exemplo desse padrão vem da contribuição dos arquitetos Marcelo Alvarenga e Susana Bastos, que assinam os figurinos da nova montagem. A dupla já havia trabalhado, no passado, com Freusa Zechmeister, criadora da maioria dos figurinos do Corpo, que faleceu em 2024. “Ela sempre gostou demais deles. Tinha muito carinho, respeito e admiração. Então, claro que isso teve a ver, mas não só por isso. Eles são criadores muito inquietos, e eu tinha certeza de que proporiam uma estética própria, que é algo igualmente importante para nós”, estabelece Paulo.

As fases

Ao olhar para trás, Rodrigo Pederneiras enxerga a história do Grupo Corpo dividida em três grandes fases.

“A primeira é aquela da segunda metade dos anos 70 até o início dos anos 80, quando o Oscar Araiz coreografava. À época, importávamos toda a parte de criação – cenografia, iluminação, tudo vinha com ele. E ainda tivemos a grande sorte de trabalhar com o Milton Nascimento, que foi de uma generosidade incrível. O trabalho já tinha uma cara, uma identidade específica”, avalia, citando “Maria, Maria”, peça de estreia do grupo, de 1976, como principal representante deste momento.

A peça 'Maria, Maria', de 1976, que marcou a estreia do Grupo Corpo | Crédito: Nuno Filho/Divulgação
A peça 'Maria, Maria', de 1976, que marcou a estreia do Grupo Corpo | Crédito: Nuno Filho/Divulgação

A segunda fase começa nos anos 1980. “Comecei a assumir as coreografias e passamos a trabalhar com Fernando Velozo (artista plástico, que criou parte das cenografias) e Freusa Zechmeister (arquiteta e designer de figurinos). Criamos nossa própria equipe. Foi um período marcado por trilhas eruditas e clássicas. Um aprendizado incrível”, sugere. Para o coreógrafo, “Prelúdios” e “Missa do Orfanato” são bons exemplares deste período.

Já no final dos anos 80 e início dos 90, inicia-se a terceira fase, quando compositores contemporâneos passam a criar trilhas originais para os espetáculos: “Isso fez toda a diferença. Nos ajudou a construir essa linguagem tão específica e comentada do Grupo Corpo. Dávamos liberdade total aos compositores: ‘Tem algo que você queira fazer e ainda não fez? Faça’. Geralmente, esses convidados nunca haviam composto para dança e, de repente, se viam nessa sinuca. E se saíram bem, entregando trabalhos que foram geniais para nós”, analisa, inteirando que foi nesse processo que a companhia consolidou sua identidade.

Apresentação do espetáculo '21', que representou uma virada de chave na história do Corpo | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação
Apresentação do espetáculo '21', que representou uma virada de chave na história do Corpo | Crédito: José Luiz Pederneiras/Divulgação

O grande divisor de águas, diz, foi “21”, com música do Marco Antônio Guimarães e do Uakti. Depois disso, vieram várias outras peças icônicas, coreografadas por Rodrigo e igualmente com trilha realizada por parceiros externos, como “Parabelo”, “Benguelê”, “Corpo” e, mais recentemente, “Gira”.

Foi justamente durante essa fase mais consolidada, porém, que o Corpo enfrentou o maior obstáculo de sua história: a pandemia de Covid-19. “Cheguei a pensar que o grupo acabaria”, admite Rodrigo. “Mas conseguimos atravessar esse período sem despedir ninguém, o que, para mim, é um grande orgulho. Baixamos salários, os sócios ficaram sem receber, mas conseguimos passar por isso. Isso demonstra o respeito que temos pelas pessoas”, comemora.

Se a pandemia da Covid-19 representou o maior desafio, talvez, agora, “Piracema” surja como um novo marco da história do grupo, com Rodrigo, pela primeira vez, criando uma coreografia em parceria com outra coreógrafa, Cassi Abranches.