“Piracema”, novo espetáculo do Grupo Corpo, que estreia nesta quarta-feira (13/8) em São Paulo, chegando a Belo Horizonte no dia 27 deste mês, é um elogio à criação. Ou, mais precisamente, à natureza criativa. Ao escolher como título a palavra tupi-guarani formada por “pira” (“peixe”) e “cema” (“subida”), a companhia mineira acerta ao traçar uma metáfora que percorre toda a obra. Fenômeno em que peixes nadam contra a corrente para garantir a continuidade da espécie, a piracema representa um esforço vital que se repete ano após ano, que, no contexto do Corpo, funciona como representação da arte que se reinventa ou ainda remete à própria imagem dos bailarinos, que, como os cardumes, seguem em movimentos coordenados.

Celebrando 50 anos, o grupo encena e vive aqui uma travessia. Pela primeira vez, a trilha sonora foi confiada exclusivamente a uma mulher, Clarice Assad, e, também de forma inédita, a coreografia foi concebida por dois nomes em paralelo – Rodrigo Pederneiras, veterano da casa, e Cassi Abranches, ex-bailarina e atual força criativa da companhia. A dupla autoria foi, nas palavras de Paulo Pederneiras, uma escolha intencional de ruptura. Ao dividir os 22 bailarinos em dois grupos e entregar a mesma música a dois coreógrafos que trabalharam isoladamente, ele instaurou um laboratório de criação, com seus tensionamentos, que resultou em três balés: o de Rodrigo, o de Cassi e um terceiro, que os funde sem diluí-los – como atestou a reportagem de O TEMPO, que assistiu a um ensaio do novo balé.

A estrutura da obra é cíclica e fluida, como a própria natureza que a inspira. Os corpos surgem contidos, em gestos menores, quase germinais. Logo, abrem-se em movimentos largos, abertos, como quem rompe águas, sobe correntezas. Há então um momento mais introspectivo, de recolhimento íntimo, como valsas a dois (ou a quatro), que evocam acasalamentos, comunhões. No instante seguinte, brotam corpos em pulsação, que lembram gestação e nascimento: corações que batem, corpos que embalam, em movimentos que vão em uma crescente até o caos de uma explosão evolutiva, quase selvagem. Por fim, em um quarto ato, há o retorno à calmaria, em um “nada fazer como um bicho, deitar na água e calmamente olhar para o céu, ser, nada mais” – como anota Adorno, em “Minima Moralia”, ao refletir sobre um estado de plenitude. 

Bailarinos durante ensaio do balé 'Piracema' | Crédito: Fred Magno/O TEMPO

Da maneira como foi construída, “Piracema”, porém, não se soa como uma simples oposição entre movimento e parada, mas como uma integração de ciclos – que o espetáculo não apenas representa, mas encarna.

Esse movimento criador, que integra o que parece oposto – caos e calma, gestos contidos e expansivos – está no cerne de todas as camadas do espetáculo. Está na trilha de Clarice Assad, por exemplo. A compositora carioca partiu de sons tribais e percussivos, evocando forças naturais, passou por texturas sinfônicas e desaguou em camadas eletrônicas que dialogam com a inteligência artificial. “É um pouco assustador pensar que hoje as máquinas também criam música”, diz Clarice. “Mas quis explorar isso. Testar os limites entre o humano e o mecânico. A trilha é quase uma metáfora da humanidade: orgânica, depois complexa, depois caótica”, brinca.

A peça, porém, não termina em meio ao caos. Ao contrário, volta à origem, com “uma música mais calma, que fala de lar, de retorno, de essência”, explica a compositora. 

Uma valsa com o desconhecido

Como se pode perceber, portanto, é tanto na forma como no conteúdo, tanto na obra como no seu fazer que se revela esse elogio à natureza criativa em um movimento que absorve e se apodera até daquilo que, a um primeiro momento, soa artificial e antinatural.

Espetáculo é a junção de duas coreografias distintas criadas a partir da mesma trilha | Crédito: Fred Magno/O TEMPO

Essa disposição para incorporar o novo – mesmo quando ele causa estranhamento – dialoga com o conceito de “natura naturans” (“natureza criativa”), apresentado pelo filósofo Antonio Cicero no livro “O eterno agora: ensaios”. Em oposição à “natura naturata” (“natureza criada”, fixa, moldada), natura naturans é a natureza em ato, que cria, que transforma, mas que é incompreendida pelo “bárbaro”, o intolerante, que, diz Cicero, é aquele que ignora essa força criadora da natureza e tenta naturalizar apenas o que reconhece como moral ou familiar. Tudo que o ultrapassa – o estranho, o ambíguo, o novo – é então tachado de antinatural. 

O Corpo, portanto, vai na contramão, ou melhor, nada contracorrente desse pensamento ainda tão em voga e apresenta “Piracema” como um elogio a essa natureza que cria – mais do que daquela criada, com suas formas eternas e fossilizadas – com o mergulho arriscado na combinação de coreografias a princípio autônomas, com o uso de sons criados por algoritmos em diálogo com aqueles orgânicos; enfim, em um constante exercício que absorve o novo ao compreender que nada existe que não esteja de acordo com ela, a natureza, seja o que for.

Assim, o processo de criação do espetáculo, como já sugerido, é também expressão deste conceito. E ele próprio – o fazer coreográfico – se fez como uma coreografia. 

Três em um

Rodrigo e Cassi trabalharam por dois meses sem contato, cada um montando sua versão. Apenas duas assistentes acompanharam ambos, guardando segredo. Quando os trabalhos se encontraram, veio a surpresa: choques, lacunas, encaixes improváveis e até momentos de completude inesperada. 

Novo espetáculo celebra os 50 anos do Grupo Corpo | Crédito: Fred Magno/O TEMPO

“Foi um trabalho hercúleo, mas chegamos a um bom termo”, avalia Rodrigo, enquanto Cassi diz ter topado o desafio inspirada pelo ethos do Corpo: “Algo assim nunca tinha sido feito. Isso é ser vanguarda. Se desse errado, a gente tentava de novo”.

Para Paulo, a proposta visava justamente tensionar a zona de conforto. “É uma forma distinta de tudo o que fizemos de conceber o espetáculo e tem tudo a ver com essa ideia de pensar coisas que nunca fizemos”, avalia, reconhecendo que, claro, nada dessa dinâmica foi simples. “No começo, todos ficaram um pouco receosos: ‘Será que isso vai dar certo?’. Mas, para resumir, o resultado, a meu ver, ficou muito superior a qualquer uma das obras individualmente”, garante, arrematando que, para sobreviver artisticamente, “é preciso nadar contra a corrente para, ao final, criar algo novo”. 

Nesse processo, Rodrigo diz ter se deixado guiar pelo pensamento da parceira coreógrafa. Ela confirma. “O Rodrigo foi muito generoso e me recebeu me deixando muito à vontade. Mas, ao mesmo tempo, eu cheguei de forma muito respeitosa. Então, do mesmo jeito que ele fala que se deixou guiar por mim, eu também preciso dizer que estive sempre muito atenta à opinião dele, porque, afinal de contas, ele é o cara!”, elogia.

Cassi assinala que o fato de ter tido uma trajetória no Grupo Corpo tornou toda essa caminhada mais harmônica. “Não cheguei com uma coreografia completamente afastada do que eles fazem, porque compartilho desse mesmo DNA”, avalia. Rodrigo ratifica. Ele, inclusive, acredita que o tema central da obra, a piracema, é simbólica de uma busca de renovação do grupo – renovação que tem um quê de continuidade.

Após estreia nacional em São Paulo, companhia apresenta novo balé em Belo Horizonte entre os dias 27 e 31 de agosto | Crédito: Fred Magno/O TEMPO

“É um conceito que simboliza muitas coisas, inclusive essa chegada, ou melhor, esse retorno da Cassi, que tem a ver com nosso desejo e estar de portas abertas para gente nova, que traga ideias novas. Caso também do Gabriel, meu filho e marido da Cassi, que já trabalha há um tempo com o Paulo na criação da iluminação. Vejo na presença deles a expressão de um processo de, aos poucos, entregar essa história que criamos há 50 anos, de passar o bastão”, defende ele, que já vem ensaiando os passos para uma redução do ritmo de trabalho – um gesto de refluxo, pausa ou retorno à essência, como o ato final de “Piracema” que outrora concebeu.

SERVIÇO:
O quê. Grupo Corpo na estreia nacional de 'Piracema'; temporada inclui também o balé 'Parabelo'
Quando. A partir desta quarta (13); até 24/8. De quarta a sábado, às 20h; domingos, às 16h
Onde. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo)
Quanto. A partir de R$ 39,80 até R$ 240,00. Ingressos disponíveis no Sympla