Os personagens centrais de "Os Enforcados" já surgem condenados após um letreiro citar uma tradição antiga em que criminosos ganham quatro dias em que assumem o lugar do rei, recebendo todo tipo de regalia. Depois têm o destino previsto no título do filme, que estreia nesta quinta-feira (14) nos cinemas.

Desta forma, o público já tem a noção do que acontecerá com o casal formado por Irandhir Santos e Leandra Leal, quando, em meio a uma grande obra na mansão, o marido e sobrinho de um grande bicheiro informa que está falido. A solução, como é de se imaginar, os colocará num beco sem saída.

O diretor Fernando Coimbra, de "O Lobo Atrás da Porta", parte dessa condenação prévia para, ao estilo das comédias violentas dos irmãos Coen ("Gosto de Sangue", "Fargo"), mostrar que, independentemente de ser pequeno ou grande, o desvio moral tem o mesmo preço.

Enquanto a perversidade permanece dentro de casa, quando simulam um roubo seguido de estupro, os protagonistas vivem com liberdade seus delitos fantasiosos. Mas quando passam a levar essa perversão a outros patamares, eles já não têm domínio sobre o que fazem.

"Os Enforcados" é, em essência, sobre essa perda de controle, em que cada pequeno ato para mantê-los no jogo significa um aprofundamento em suas mazelas, sendo obrigados a verem o próprio e crescente processo de destruição moral.

Há uma parede que, nessa casa em construção, vira o pilar da indignidade. Por mais que a pintem ou a escondam, ela reflete as impurezas da alma, torturando principalmente aquela que, desde a primeira cena, queria apenas erguer seu palacete no alto do Rio de Janeiro.

O estado da casa, numa interminável construção, diz muito de nossa sociedade, de um mundo de aparências montado em bases não sólidas. Isso também se reflete na criação de um outro Estado dentro do Estado, a partir do jogo do bicho, com as suas regras próprias.

Há referências explícitas a obras de William Shakespeare, "Hamlet" e "Macbeth". Do primeiro, a ideia de um fraticídio e da aparição do fantasma do pai ao filho vingativo. Do segundo, a ambição como porta de entrada para a decadência moral, estimulado pela esposa.

Coimbra controla bem o ritmo de suspense, com o mundo do casal desabando até, se podemos dizer assim, se "canibalizarem" em prol da sobrevivência, dosando elementos shakespearianos de traição,  desconfiança e loucura.

Outros filmes já pegaram uma temática universal ou mesmo um livro conhecido e levaram para um universo diferente, geralmente realista e moderno, como "Grande Sertão", de Guel Arraes. A ambientação de "Os Enforcados" no submundo do jogo de bicho acrescenta pouco, porém.

Os personagens, como o tio vivido por Stephan Nercessian e os outros "capos" do jogo do bicho, são muito carciaturais, assim como o policial federal encarregado da investigação. A narrativa cresce quando o casal central tem seus limites testados.

Como em "O Lobo Atrás da Porta", nenhum personagem é santo, o que acaba sendo um aspecto interessante do filme, já que somos levados a nos solidarizar com Irandhir Santos pelo aspecto tragicômico, como nos trabalhos dos Coen.

E na escalada violenta do conflito interior e doméstico, Irandhir e Leandra Leal garantem boas interpretações, tornando os personagens miseravelmente humanos. A dupla e a boa mão de Coimbra para o gênero põe "Os Enfocardos" em um degrau acima de muitos suspenses hollywoodianos.