“Aqüenda o edi da mona cá gritando nesse oxó do axé”. A frase, uma criação de Amara Moira, está entre as 13 intervenções apresentadas pela Festa da Luz, que ocupa o baixo centro de Belo Horizonte desde quinta-feira (14/8), com programação se estendendo até domingo (17/8). E a sugestão, para quem quiser fazer fotos com a obra ao fundo, é escolher roupas que valorizem os glúteos.

Explica-se: a criação em bajubá – dialeto desenvolvido por travestis na década 1960 nas zonas de prostituição das grandes cidades, no contexto de um país que vivia sob um regime militar – significa, em tradução livre, “vejam só como o meu buzanfã chama atenção nessa roupa que traz sorte”. A explicação é da própria autora, que conversou com O TEMPO na véspera da abertura do festival.

“Todinha escrita nessa linguagem criada pelas travestis brasileiras, a frase fala do corpo que se destaca, que grita, que atrai olhares e causa a perdição de quem se deixa enfeitiçar. Fala também de festa, de rua, de luta, pois o bajubá (‘segredo’, em iorubá) é uma ferramenta histórica de resistência da nossa comunidade. Além disso, a frase ainda traz essa sonoridade inusitada, irreverente, que tenta juntar coloquialidade e poesia”, explica a escritora, crítica lite­rária, travesti e ativista do movimento das trabalha­doras sexuais.

Ela lembra que o convite para participar desta edição da Festa da Luz veio diretamente de Juliana Flores, diretora artística do evento (leia mais sobre ela na reportagem ‘A mulher por trás de projetos que colorem e iluminam BH’). “A Juju me falou da vontade de trazerem uma frase em bajubá, me apresentou alguns exemplos de anos anteriores e garantiu que eu teria bastante liberdade na composição. Acabei compondo três opções, todas com esse elemento poético e coloquial bem destacado, mas variando no quão cifradas elas eram”, detalha, inteirando que a frase escolhida foi a que pareceu mais equilibrada – “juntando o encantamento e ciframento do bajubá, sem impedir a compreensão da mensagem”, avalia.

Embora nascida em Campinas e pouco habituada aos ares belo-horizontinos, Amara já havia sido impactada por trabalhos apresentados em outras edições do festival que agora participa. Caso da célebre criação da poeta Lívia Sabino, que, em 2023, viralizou com a intervenção “Bater a laje no céu da boca dos nossos sonhos”. Tamanha repercussão, a frase inspirou uma peça de teatro neste ano, criada pela Trupe Espanca.

“A frase da Nívea é um espetáculo e me mostrou o tamanho do desafio que eu teria pela frente”, admite Amara. “É uma oportunidade única de brincar com a imaginação da população belo-horizontina. Começa com uma provocação: que língua é essa? Daí vamos nos deparando com palavras familiares, percebendo que tem a ver com cultura travesti e a coisa vai ficando mais compreensível”, reflete ela, para quem o aspecto lúdico da criação é ainda um chamado à compreensão do bajubá como uma ferramenta de criação poética.

Flerte

Coroada pela participação na Festa da Luz, o flerte de Amara com Belo Horizonte já vem de algum tempo, em uma aproximação intermediada por alguns nomes do ativismo LGBTQIAPN+ e da literatura mineiros.

“Luiz Morando, por exemplo, é uma das minhas maiores referências na pesquisa da história LGBTI+… sua investigação é tão profunda que faz parecer que BH é o epicentro da diversidade sexual e de gênero no Brasil”, elogia ao falar com reverência do trabalho do autor de “Paraíso das Maravilhas: uma história do crime do Parque” (2012), que investiga a sociabilidade gay no Parque Municipal de BH nos anos de 1940 a partir de um crime que marcou o imaginário da época, e “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte” (2020), sobre uma personagem que viveu nos arredores dos bairros Bonfim e Lagoinha entre 1950 e 1980, e que hoje seria entendida como uma combativa travesti, mas que, em vida, não pôde ter essa identidade reconhecida. Atualmente, como antecipou a OTEMPO, ele prepara uma série de cinco volumes intitulada “Inventário das vivências dissidentes de sexo-gênero em Belo Horizonte”.

Além de Luiz Morando, Amara menciona também a importância que tiveram na sua vida as obras de pessoas trans mineiras, como Ruddy Pinho, Luísa Marilac, Porcina D'Alessandro e o pessoal da Academia TransLiterária. “Com certeza vou esquecer um monte de pessoas, mas eu mencionaria ainda as trocas e aprendizados que tenho com a deputada Duda Salabert, a putafeminista Santuzza (do coletivo Rebu), e os escritores Ricardo Aleixo, Conceição Evaristo e Renato Negrão”, cita.

Enquanto a relação de Amara com BH ganha contornos cada vez mais sólidos, íntimos e – por que não? – luminosos, a autora só lamenta que, por conta de outros compromissos, não conseguirá vir para a cidade a tempo de participar da Festa da Luz. “De qualquer forma, se eu não posso estar, pelo menos um pedacinho de mim estará”, pondera, reconhecendo aguardar com expectativa o retorno da cidade à sua criação: “Eu tenho estudado o bajubá há algum tempo, produzindo textos nessa linguagem e levantando documentos que contem da sua centenária história, então será lindo ver a reação da população de BH com essa instalação”.

Poesia coloquial

O trânsito de Amara Moira pelo coloquialismo e poesia, flagrante na intervenção proposta na Festa da Luz, já vinha sendo incensado desde a publicação do novo livro, “Neca: Romance em pajubá”.

O título é apresentado como “uma mistura de ‘Grande ser­tão: veredas’, de Guimarães Rosa, com ‘Os 120 dias de Sodoma’, do Marquês de Sade” em um ensaio publicado neste mês na revista “Piauí” pela crítica e professora de literatura Eliane Robert Moraes. Do primeiro, vem a es­trutura, com um monólogo confessional que organiza o de­poimento da narradora; do último, vem a libertadora constatação de que “os lados mais sombrios da imaginação po­dem resultar nas nossas melhores contri­buições à literatura”. Outra possível referência é o irlandês James Joyce, sobre o qual ela se debruçou em sua dissertação de mestrado em teo­ria e história literária, defendido na Uni­camp.

“(‘Neca’) é a minha obra mais metida a besta, onde eu trouxe o que sei fazer de melhor com a palavra. Foram quase dez anos desde a escrita da primeira frase até a publicação desse livro, que não considero um ponto final: planejo continuar expandindo esse texto para, daqui a dez anos, publicar uma versão com o dobro do tamanho, muito mais cifrada e usando todas as palavras que conheço do bajubá (ou pajubá, outra forma de nomear essa linguagem)”, descreve, feliz por ter tido uma negociação relativamente tranquila com a Companhia das Letras – “nunca vetaram nada das estripulias que eu inventei ali. A única questão colocada pelo meu editor foi: traga o máximo possível de bajubá, mas garanta que o leitor vai achar que está entendendo”, conta.