Há três anos, Raphael Montes se preparava para encontrar seus leitores em um evento da Bienal do Livro de São Paulo, seu primeiro grande evento após a pandemia. Quatro horas antes do horário marcado, recebeu uma ligação da Companhia das Letras, indicando a urgência de chegar ao local.
Era melhor ele já ir correndo para lá - tinha uma fila causando aglomeração em torno do estande da editora na Bienal. Montes saiu mais cedo, encontrou seus fãs e autografou por quase nove horas seguidas, até depois do fechamento do pavilhão.
"Foi a primeira vez que a coisa saiu do controle", brinca ele, um jovem elétrico de 34 anos e brinco na orelha, durante entrevista em um escritório na avenida Paulista, acompanhado sempre de sua assessora de imprensa e seu gerente de redes sociais.
Foi naquele momento que sua fama mudou de patamar. Os dois autores mais vendidos da Companhia naquela Bienal de 2022 ainda foram Clara Alves e Pedro Rhuas. Já na Bienal do Rio de dois meses atrás, dos cinco livros mais vendidos pela maior editora do país, cinco eram de Raphael Montes.
O primeiro do pódio foi "Jantar Secreto", enredo sobre uma seita canibal promovida pela elite carioca com carne de gente pobre e marginalizada compondo um menu grã-fino. Já vendeu 200 mil exemplares. Logo em seguida veio a edição especial de "Dias Perfeitos", livro que já chega a 80 mil cópias e vira agora uma série com estreia nesta quinta-feira (14/8) no Globoplay.
Explicar o que produz sucesso tão fora da curva é sempre arriscado, mas no caso de Montes tem a ver com sua interlocução forte com o audiovisual, capaz de projetar suas tramas e sua assinatura, e um boca a boca virtual que contaminou o público jovem principalmente no boom literário da quarentena.
"Quando eu comecei, além do preconceito da crítica, tinha o preconceito do leitor", diz, em referência ao início da década passada. "O brasileiro falava, ah, literatura de suspense é americano que sabe fazer. Hoje o leitor brasileiro descobriu o prazer de ler histórias brasileiras".
O romancista cita colegas como Carla Madeira, Itamar Vieira Junior, Socorro Acioli, lista de best-sellers parecida com a que o editor Luiz Schwarcz levanta justamente para frisar que o caso de Montes "não é generalizável".
"Hoje o Raphael divide seu tempo como roteirista, sempre teve um pé nisso e foi crescendo", aponta o fundador da Companhia das Letras, que participou ativamente da edição de "Dias Perfeitos", primeiro original do autor comprado pela casa há 11 anos. "Muita gente vira roteirista e passa décadas sem escrever. Vão para a Globo e não voltam para o livro. Não é o caso dele".
Montes se firmou no streaming em parcerias com a Netflix, como o filme "Uma Família Feliz" e a série "Bom Dia, Verônica", feita com a amiga Ilana Casoy. Mas explodiu de vez com sua primeira novela, "Beleza Fatal", escrita sob a bênção do ídolo Silvio de Abreu na HBO Max.
Agora ele abre terreno no Globoplay com a adaptação de uma de suas obras mais bem acabadas. "Dias Perfeitos" conta a história de Téo, estudante de medicina metódico e retraído que se apaixona - ou se obceca - por Clarice, roteirista libertária que goza de uma sexualidade mais aberta.
A história é menos "Romeu e Julieta" que "Misery", de Stephen King - já no começo do livro, Téo espanca Clarice e a leva dentro de uma mala para sua casa, onde a dopa por dias até decidir que o mais seguro era viajar com a garota para uma pousada no meio do nada em Teresópolis, no interior do Rio de Janeiro.
"Preferia conquistá-la discretamente, nos pequenos gestos, mostrando como podiam ser felizes juntos", pensa o Téo do livro, justificando sua violência como um meio para a gentileza, à moda da figura tão contemporânea do homem "incel" rejeitado.
Na série, ele é vivido por Jaffar Bambirra - nos dois episódios disponibilizados à reportagem, o ator se mostra hábil em emular o psicopata entre olhares petrificados e tom de voz suave. O livro é todo contado pela perspectiva dele, numa obsessão distorcida que recorre às aulas de Vladimir Nabokov para obrigar o leitor a desmontar o narrador criminoso que o conduz.
Aí está a maior diferença entre obra literária e audiovisual - a série se divide entre a perspectiva de Téo e a de Clarice, feita por uma Julia Dalavia imbuída de carisma e vitalidade inédita.
A ideia de oferecer o ponto de vista de Clarice para expandir a obra foi de Claudia Jouvin, roteirista que comanda a adaptação. "O livro é maravilhoso e funciona, mas hoje em dia você precisa de outros discursos", afirma.
"O problema não é o personagem ser misógino, é a série ser misógina", aponta. "Quando você dá mais agência à personagem, vê que ela tem um raciocínio, faz com que ela não seja só uma vítima. Uma série que é só violência fica indigesta, e o universo da Clarice é de esperança".
Num evento ao lado de Claudia no ano passado, Montes anunciou empolgado à plateia que a colega ia mudar o final da história - o que era tétrico na página deve ser mais animador na tela. O autor nunca teve problema com adaptações bruscas na sua obra, atento a leitores com quem tem uma relação de equilíbrio entre agradar e provocar.
A Companhia das Letras não foi sua primeira editora, apesar de Montes ter tentado. O violentíssimo "Suicidas", sobre um grupo de jovens que se mata num porão após se desafiar numa roleta-russa, acabou saindo pela Saraiva após ser selecionado em um prêmio interno chamado Benvirá. O autor tinha 19 anos.
"Um escritor só ganha dimensão quando entra em alguma onda social", diz Thales Guaracy, que foi seu primeiro editor. "A obra do Raphael vai além do thriller. Fala da falta de perspectiva do jovem de hoje, um mundo que não apresenta futuro, carreiras que se desfazem rapidamente".
Guaracy lembra que, ao ler "Suicidas", viu "um jovem de Copacabana que era um daqueles personagens, se perguntando o que fazer da vida". Hoje sua obra já está em fase adulta, aponta o editor, tendo ganhado o Jabuti de melhor romance de entretenimento com "Uma Mulher no Escuro" em 2020.
"A literatura de gênero é considerada pela crítica, às vezes pela imprensa, uma literatura menor, uma coisa descartável", afirma Montes. "Existem livros que são mero entretenimento mesmo, que você lê no avião, fecha e nunca mais pensa naquela história. Mas existe entretenimento que cutuca você em algum lugar, que instiga, faz pensar".
O autor diz que agora está explorando um novo gênero, o thriller erótico. Sabe aqueles filmes dos anos 1980 e 1990, como "Atração Fatal" e "Instinto Selvagem"? Pois é. Mas ele não quer dar mais detalhes sobre o próximo livro.
O que dá para contar é que Montes acaba de fechar um contrato de seis dígitos para ter dois livros editados nos Estados Unidos pela Celadon Books, divisão da editora MacMillan com curadoria afiada para thrillers.
Não é a primeira vez que ele é publicado lá fora - sua obra chega hoje a 25 países -, mas agora quer ser bem editado. Não ser só mais um na multidão.
"Eu tenho muito orgulho de ser brasileiro. Já me disseram que se eu fosse americano, estaria milionário - e eu falei, 'mas aí eu não teria Carnaval'. Quando um autor brasileiro é traduzido, a primeira característica dele é ser exótico. O que eu adoraria é ser conhecido como um bom autor de thrillers", diz ele. "E que é brasileiro".
'Dias Perfeitos'
Quando. Quatro primeiros episódios nesta quinta (14/8), no Globoplay
Autoria. Claudia Jouvin, baseada na obra de Raphael Montes
Elenco. Julia Dalavia, Jaffar Bambirra, Debora Bloch
Direção. Joana Jabace